E agora, América? O impossível aconteceu

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A meio da noite, quando Donald Trump já ia à frente de forma decisiva, um afro-americano de cigarro na boca espetou-se de bicicleta no cruzamento da Melrose com a Poinsettia, em Los Angeles. O pneu saltara, mas ele voltou para cima da bicicleta e continuou a pedalar, usando apenas o metal. Vagueou pelo semáforo e quase foi atropelado por um carro, entrou em contra-mão e deixou toda a gente que estava a assistir à transmissão das eleições nos bares próximos de boca aberta. "Está farto de estar vivo", gritou alguém. "Se o Trump ganhar, vai aumentar o número de suicídios", disse outro.

Nesta altura, Trump liderava 238 contra 215 votos do colégio eleitoral. "Se temos todos estes imbecis analfabetos a votarem no Trump, se calhar precisamos que o sistema impluda para ver se conseguimos realmente mudar as coisas e elevar um terceiro partido", dizia-me Nick Ross, um músico de 37 anos que votou Jill Stein e estava lívido com os resultados.

O cenário em que poucos analistas, comentadores e políticos acreditavam começou a desenhar-se cedo. As primeiras projeções a ser avançadas davam quase todos os votos do colégio eleitoral a Donald Trump. Podia ser uma questão geográfica - os Estados do Norte e da Costa Oeste iriam equilibrar as contas e pôr Hillary Clinton na liderança. Mas à medida que a tarde se transformou em noite, tornou-se claro que isto não era um soluço. Não era um engano. A Califórnia deu a vitória a Hillary Clinton e é um estado progressista, que inclusive aprovou o uso de marijuana para fins recreativos nestas eleições - um mega avanço para a causa dos defensores da canábis. Por isso, não havia ninguém a festejar. As mulheres com t-shirts de apoio à Hillary olhavam para os smartphones. Os homens bebiam cerveja. Havia risos nervosos, como se tudo isto fosse uma anedota, um sonho mau, uma realidade alternativa.

"Esta é a cara da jihad evangélica, racista, cristã na América", gritou Alex Ricks, 32 anos, de Minneapolis, Indiana, quando chegou ao The Dark Room. "Todas as baratas deste pais saíram hoje." Votou na Hillary Clinton. Tinha votado no Barack Obama duas vezes. "Agradeço a Deus vivermos na Califórnia, o estado mais diverso do país. As pessoas não subestimaram a estratégia de Trump. Subestimaram o quão racista este país é."

Passei por todos esses estágios ao longo da noite, até chegar à conclusão de que se calhar isto não é assim tão mau. Os Republicanos mantiveram a Casa e o Senado e ganharam a presidência; a partir de 20 de janeiro de 2017, é tudo com eles. Venha daí essa América. Mostrem-nos, vá, como é que vão tornar a América grande outra vez. Não vão poder acusar Obama nem os "media liberais" de tudo de mal que veem no país. Vão ter de se chegar à frente com as promessas: revoguem o direito ao aborto, construam o muro com o México, deportem 16 milhões de emigrantes ilegais, acabem com o Obamacare e tirem o seguro de saúde a 21 milhões de pessoas, rasguem acordos internacionais, tragam de volta a manufatura para ver se as T-shirts passam a custar 30 dólares, obriguem o Starbucks a pôr Feliz Natal nos copos. Agora será com vocês. Assumam o que fizeram. E veremos então se todos aqueles que votaram no Trump ainda vão achar que a América vai voltar a ser grande daqui a um ano.

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