"É a Elcano que se deve a glória de ter concluído a primeira Volta ao Mundo, apesar de a ter realizado por desespero"

Três anos depois do início da expedição, uma nau solitária regressa a Espanha sob comando de um basco. Faz esta terça-feira, 6 de setembro, 500 anos.
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O historiador José Manuel Garcia, biógrafo de Fernão de Magalhães (é autor de Fernão de Magalhães, herói, traidor ou mito da editora Manuscrito e de A Viagem de Fernão de Magalhães e os Portugueses da Editorial Presença), explica que a Circum-navegação não era o objetivo inicial, mas não deixa de ser um feito. Morto nas Filipinas em 1521, o português Magalhães foi, porém, o cérebro do projeto e também o navegador que, ao serviço de Carlos V, descobriu o estreito a ligar o Atlântico ao Pacífico e depois cruzou todo o imenso mar desconhecido até uma Ásia onde já tinha estado em busca das especiarias, mas às ordens de D. Manuel I.

É surpresa total a chegada de Juan Sebastián Elcano e dos poucos sobreviventes na nau ​​​​​​​Vitoria a Espanha, a 6 de setembro de 1522?
Foi um espanto absoluto, na medida em que nunca se poderia ter suposto à partida, em 20 de setembro de 1519, da Armada de cinco naus comandada por Fernão de Magalhães que dela apenas tenha regressado a Espanha uma nau, quase três anos depois, trazendo apenas 18 sobreviventes e, ainda por cima, sob o comando imprevisível de Elcano. O que era suposto ter acontecido era que a Armada tivesse continuado sobre o comando de Magalhães durante os dois anos inicialmente previstos para a duração da viagem e que, apesar de um muito alto número de vítimas que viesse a ocorrer, não tivessem regressado tão poucos homens, ainda que 55 já tivessem voltado a Espanha na nau Santo António, depois da sua fuga no Estreito de Magalhães, e depois ainda tivessem regressado à Europa mais 17 tripulantes.

Qual o mérito deste navegador espanhol, que em 1519, quando o português Fernão de Magalhães iniciou a sua viagem, nem sequer era figura de topo na expedição?
É ao basco Juan Sebastián Elcano que se deve exclusivamente a glória de ter concluído a primeira Volta ao Mundo feita de seguida, apesar de a ter realizado por desespero e contra as ordens de Carlos V. A primeira Volta ao Mundo feita de uma forma contínua e direta foi terminada em 1522 sob a direção de Elcano, devido a uma daquelas contingências inesperadas da História que, por vezes, acontecem. Elcano estava bem consciente do feito gigantesco que acabara de realizar, como o demonstrou logo que, em 6 de setembro 1522, chegou a San Lúcar de Barrameda. Com efeito na carta que nesse dia enviou a Carlos V escreveu: "Mais saberá sua alta majestade que aquilo que mais devemos estimar e considerar é que descobrimos e rodeámos toda a redondeza do mundo, indo para o ocidente e vindo pelo oriente". Elcano, de início, estava afastada da direção da expedição pois seguiu como mestre da nau Concepción, tendo sido apenas em 16 de setembro de 1521, quando o que restava da Armada estava em Bornéu, que ele foi nomeado capitão da nau Vitoria, depois da destituição do seu então comandante, o português João Lopes de Carvalho.

CitaçãocitacaoColombo descobriu um novo mundo a Ocidente, Vasco da Gama iniciou uma ligação direta com o Oriente e Magalhães acabou de descobrir completamente a Terra ligando o Ocidente e o Oriente. Foi devido aos seus feitos marítimos que estes homens se afirmaram como figuras decisivas no progresso da Humanidade.esquerda

A circum-navegação que Elcano completou nunca foi sequer o objetivo da missão financiada pelo imperador Carlos V, certo?
A volta à Terra que Elcano acabou por realizar não só nunca foi o objetivo da viagem concebida por Magalhães, que era ir às Molucas por Ocidente, provar que essas ilhas pertenciam a Espanha e, de seguida, regressar pelo mesmo caminho, como foi expressamente proibida a eventualidade de a fazer. Com efeito Carlos V deu ordens categóricas e muito claras de que a Armada deveria regressar pelo mesmo caminho que fizesse para chegar às Molucas, pois não poderia, de forma alguma, passar pelas áreas sob o Domínio Português do Oriente que haviam sido determinadas pelo Tratado de Tordesilhas, o qual ele queria respeitar. Tal facto impossibilitava qualquer tentativa de realizar uma volta ao mundo. A prova evidente de tal realidade resulta do facto de uma viagem como a que foi realizada por Elcano nunca mais ter sido feita, pois após 1522 Carlos V continuou a proibir que os castelhanos passassem pela parte portuguesa do mundo. Elcano só navegou das Molucas até Espanha navegando pelo sul do Oceano Índico, para assim escapar à sua captura pelos portugueses, porque teve receio de arriscar a vida num imprevisível regresso pelo Oceano Pacífico através de uma rota desconhecida, como ainda o tentou fazer em vão a Trinidad, o outro navio da Armada então comandado por Gonzalo Gómez de Espinosa.

É graças ao italiano Antonio Pigafetta, um dos sobreviventes, que conhecemos o que se passou na expedição destinada a encontrar as ilhas das especiarias viajando para Ocidente, ou houve outros relatos que permitiram também apurar todos os percalços quase desde o início?
A relação escrita por Antonio Pigafetta constitui a principal fonte da viagem, mas há outros testemunhos importantes, de que destaco o diário que dela foi feito pelo grego Francisco Albo, o qual é muitas vezes mais rigoroso e completo na descrição de pormenores da navegação do que a obra de Pigafetta. Temos ainda relatos feitos pelas seguintes personalidades, que participaram na expedição: Martin de Ayamonte, Léon Pancaldo, Ginés de Mafra, Gonzalo Gómez de Espinosa e um português que ficou anónimo, que talvez se chamasse Luís Peres. Há também textos importantes baseados em testemunhas presenciais que foram escritos por António de Brito, Maximiliano Transilvano e Pietro Martire d"Anghiera, além dos registos mais ou menos importantes deixados por cronistas portugueses e castelhanos.

Magalhães foi boicotado desde o início pelos espanhóis porquê, já que contava com o apoio do soberano?
Desde o início da viagem houve má vontade dos capitães espanhóis contra Magalhães pelo facto de este capitão-mor da Armada ser um português que havia ido para Espanha havia apenas dois anos e porque era um fidalgo pouco importante, sendo, por isso, que eles tinham dificuldade em submeter-se à sua autoridade, embora eles não tivessem quaisquer conhecimentos de navegação.

Elcano chegou a estar numa das revoltas?
Sim, Elcano chegou a ser um dos protagonistas do motim que ocorreu em 1 de abril de 1520 no Puerto de San Julian, na Argentina, o qual visava destituir Magalhães do comando da Armada e fazê-la regressar a Espanha. Depois de Magalhães ter conseguido assumir de novo o controlo da Armada, Elcano foi um dos 40 condenados à morte pela sua revolta, mas todos foram amnistiados, pois eram necessários para a continuação da viagem. De Elcano, apenas se voltou a ouvir falar quando passou a ser o capitão da nau Vitoria. É de notar que a maior parte da tripulação admirava Magalhães.

A passagem do Estreito de Magalhães é o grande feito da expedição?
O descobrimento e passagem do Estreito de Magalhães foi o principal sucesso alcançado por Magalhães, pois foi ele que lhe permitiu conhecer a tão desejada e procurada ligação entre os oceanos Atlântico e Pacífico, a qual lhe permitiu fazer, pela primeira vez, a assombrosa travessia do Oceano Pacífico em toda a sua enorme extensão que até então era ignorada. Foi esta realização que lhe permitiu descobrir ser a parte aquática do planeta maior do que a terrestre.

Quando chega às Filipinas, Magalhães, de certa forma, dá a Volta ao Mundo, pois já estivera perto, nas Molucas?
Consideramos que o facto mais importante da história de Magalhães consiste na circunstância de perceber que ele foi o primeiro homem a alcançar o conhecimento da Terra tal como ela é. Esta importantíssima realidade deriva do facto de ele ter conseguido acabar de dar uma volta à Terra quando, em 1521, chegou às Filipinas com os espanhóis, porque antes, em 1512, ele já havia logrado ir com os portugueses às ilhas do sul das Molucas, pois estas encontravam-se numa longitude semelhante à das Filipinas. Foi assim que, em duas fases, Magalhães realizou a primeira viagem de circum-navegação da Terra, o que, apesar de ter sido feito de forma indireta, sublinhamos, constituiu um dos feitos mais notáveis da História da Humanidade. Esta realidade não impede, de qualquer forma, de sublinhar a grande glória que se deve a Elcano de ter sido ele que, de facto, conseguiu fazer a primeira Volta ao Mundo direta.

É por excesso de confiança que Magalhães se deixa envolver num conflito local e acaba morto?
A morte de Magalhães, em 27 de abril de 1521, resultou de um excesso de confiança na capacidade bélica de que um pequeno grupo de 49 homens poderia vencer uma força ignorada de nativos da Ilha de Mactan, nas Filipinas. Os inimigos, contudo, eram em número superior a 1500 ferozes guerreiros e conseguiram derrotá-los. É de estranhar que um homem com experiência bélica, como era Magalhães, tivesse realizado tal ação em condições manifestamente adversas, tanto mais que ele saberia que os nativos poderiam oferecer uma resistência maior e conheceria o seu tipo de armamento, pois já estava nas Filipinas há bastantes dias. Há a considerar, contudo, que uma atitude tão irracional de Magalhães possa estar relacionada com uma situação de desespero em que ele se encontrava. Com efeito, verificamos que, segundo um registo do piloto Francisco Albo, se havia verificado que a expedição, ao chegar às Filipinas, já estava na parte portuguesa do mundo, o que ia contra a expectativa e os cálculos realizados por Magalhães sobre a localização das Molucas, que defendia estarem na parte espanhola. Assim sendo, quando Magalhães decidiu lutar talvez se possa pensar que ele estava a cometer um ato de desespero resultante da circunstância de ter considerado que a sua missão havia falhado. Não se trataria assim, e apenas, de uma iniciativa completamente despropositada e inútil, só para patentear o seu poder junto do rei de Cebu, que se lhe submetera e a quem queria impressionar.

Sabe-se as razões de Magalhães ter oferecido os serviços a Carlos V, depois de tantos anos a trabalhar para D. Manuel I?
Foram duas as principais razões que levaram Magalhães a pôr-se ao serviço de Carlos V, contra os interesses do rei português. A primeira e a mais importante foi a de que este não lhe deu um aumento de 100 reais mensais na sua "moradia" (salário), o que ele considerou uma ofensa, tendo em conta a valia dos serviços que desde 1505 havia feito ao rei no Oriente e em Marrocos. Foi devido a tal atitude que ele, agastado, foi para Sevilha, onde chegou em 20 de outubro de 1517, com a intenção de se pôr ao serviço de Carlos V. Há, no entanto, um outro motivo importante para ele ter abandonado Portugal, o qual consistiu no facto de o rei não lhe ter dado autorização para regressar às Molucas pelo lado português (oriental). Com efeito Magalhães declarou por carta enviada em 1516 ao seu amigo Francisco Serrão, nas Molucas, que "cedo se veria com ele [nas Molucas]; e que, quando não fosse per via de Portugal, seria per via de Castela, porque em tal estado andavam suas cousas; portanto que o esperasse lá". Como ele não resolveu o seu contencioso com D. Manuel, e não pôde ir para as Molucas por Oriente, decidiu lá ir por Ocidente, isto é, pela parte do mundo que pertencia a Castela.

CitaçãocitacaoFoi Magalhães que, graças à sua larga experiência de navegação, que alcançara ao viajar por todo o Oriente entre 1505 e 1513, não apenas concebeu o projeto da viagem que queria realizar para ocidente a fim de encontrar as Molucas ricas em especiarias, mas sobretudo porque foi ele que dirigiu tal viagem na sua parte original e mais difícil. Foi assim que conseguiu descobrir, só por si, a metade do mundo que que ainda faltava conhecer, a qual corresponde à parte que vai do Rio da Prata até às Filipinas.esquerda

Havia marinheiros, não só espanhóis e portugueses, mas de muitas outras nacionalidades, não é?
Dos 237 homens que em Sevilha embarcaram na Armada de Magalhães a maioria veio das várias regiões de Espanha, mas havia tripulantes de mais oito nacionalidades: 34 portugueses, 24 italianos, 19 franceses, 9 gregos, 5 flamengos, 4 alemães, 2 irlandeses e 1 inglês. Embora estejamos, obviamente, perante uma expedição exclusivamente castelhana, podemos dizer que, tendo em conta o amplo leque da nacionalidade dos que nela participaram, se tratou de uma realização europeia e, por tal motivo, consideramos que seria de erguer um digno memorial que evocasse os nomes de todos esses heroicos participantes naquela que foi a mais longa, difícil e significativa viagem marítima de todos os tempos.

Elcano regressa, vivo, Magalhães morre a meio. Mesmo assim, é Magalhães que é reconhecido como um grande navegador. Como explica?
É muito fácil explicar tal facto, porque foi Magalhães que, graças à sua larga experiência de navegação que alcançara ao viajar por todo o Oriente, entre 1505 e 1513, não apenas concebeu o projeto da viagem que queria realizar para Ocidente a fim de encontrar as Molucas ricas em especiarias, mas sobretudo porque foi ele que dirigiu tal viagem na sua parte original e mais difícil. Foi assim que conseguiu descobrir, só por si, a metade do mundo que ainda faltava conhecer, a qual corresponde à parte que vai do Rio da Prata até às Filipinas. Ao fazer então uma navegação por "mares nunca dantes navegados" acabou de percorrer, pela primeira vez na História, todos os oceanos do planeta, o que lhe permitiu conhecê-lo em toda a sua plenitude.

Magalhães, Cristóvão Colombo, Vasco da Gama. Algo em comum entre estes três navegadores que mudaram o nosso conhecimento do mundo na passagem do século XV para o XVI?
O que há de comum entre todos eles encontra-se na grande ousadia e capacidade de enfrentar o desconhecido que revelaram para conseguirem alcançar os seus objetivos e, assim, terem permitido que se alcançasse a real imagem do mundo que antes deles não existia. Colombo descobriu um novo mundo a Ocidente, Vasco da Gama iniciou uma ligação direta com o Oriente e Magalhães acabou de descobrir completamente a Terra ligando o Ocidente e o Oriente. Foi devido aos seus feitos marítimos que estes homens se afirmaram como figuras decisivas no progresso da Humanidade e se libertaram "da lei da morte".

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