Afinal não são as cegonhas que trazem os bebés. Ou antes, as crias. Eis a primeira diferença de argumento entre o Dumbo de 1941, que tem uma bela sequência inicial de entrega de recém-nascidos, e o novo filme de Tim Burton. Melhor dizendo: eis a diferença necessária entre o que é próprio de uma animação infantil e um filme de imagem real (claro, com muitos pozinhos digitais pelo meio)..Desta feita, vamos descobrir a célebre cria de elefante debaixo de um fardo de palha, escondido pela mãe, que não quer o seu filhote exposto à maldade alheia. E tem boas razões para isso. Como se sabe, Jumbo Júnior veio ao mundo com umas orelhas muito maiores do que o normal e está condenado ao epíteto de freak, aberração. Daí que o nome Jumbo se tenha convertido rapidamente em Dumbo (do inglês dumb, idiota). E, aparte a má conotação, assim ficou para a posteridade..Recordemos que o clássico da Disney foi a quarta longa-metragem dos estúdios e, dentro dessa categoria, é dos filmes mais curtos, com apenas 64 minutos. Realizado após os falhanços de bilheteira dos ambiciosos Pinóquio e Fantasia, a ideia de Walt Disney era recuperar financeiramente através de uma produção simples e barata, que viabilizasse um sucesso de box office indispensável naquele momento delicado..Assim, a verdade é que, nascido deste contexto, o pequeno filme baseado num livro de Helen Aberson com ilustrações de Harold Pearl tornou-se uma das mais amadas animações com selo Disney - ainda que o seu lançamento, poucas semanas antes da entrada dos EUA na Segunda Guerra Mundial, tenha sido prejudicado pela circunstância histórica..Colorido, musical, gracioso e muito emotivo, o primeiro Dumbo tem tudo o que define o quilate das produções do estúdio, sem que por um instante se note a conjuntura económica na sua origem (regista-se, quando muito, a pouca duração). E foi sobre essa fabulosa arte criativa que Tim Burton se debruçou para reconstruir agora um filme de outra envergadura de produção, embora não superior ao encanto narrativo do original. Continua a contar-se a história de um pequeno paquiderme que aprendeu a voar com as suas orelhas-asas, mas, ao invés do ponto de vista dos animais, são os humanos que dão acesso a este relato da separação do elefante júnior da sua mãe..Acompanhamos então o "nascimento de uma estrela", com a ajuda de dois irmãos que fazem parte da trupe do circo liderado por Danny DeVito. E o enfoque está no início de uma possível carreira artística de Dumbo - algo que é apenas aflorado na animação de 1941..Na ausência do amigo rato Timóteo, que tanta alegria e bondade dá ao filme original, são estas duas crianças da família circense que tomam o lugar de anjos-da-guarda de Dumbo, tentando protegê-lo do mundo perigoso da fama, quando são levados por um bizarro magnata (Michael Keaton) para o grande parque de diversões Dreamland (versão sinistra da Disneylândia). Aí o carismático elefante, considerado o trunfo das atrações, deverá concretizar o seu número mais impressionante, juntamente com uma esbelta acrobata francesa (Eva Green), para gerar muitos cifrões....Estamos diante de uma parábola sobre o mundo pronto a corromper uma alma inocente? Sem dúvida. Se o Dumbo de Walt Disney nos falava da superação dos medos por parte de quem é diferente, aqui já estamos noutra fase e noutra escala..O cinema-espetáculo.De facto, o que interessou a Tim Burton - considerando também o caderno de encargos da Disney - foi explorar uma dimensão aparatosa. Ou melhor, converter o festim para os olhos que é a versão animada num outro tipo de magia e espetáculo visual, mantendo algum do toque de excentricidade que caracteriza o seu próprio universo fílmico. Nomeadamente, lembramo-nos de Batman Regressa (1992) e O Grande Peixe (2003), filmes em que a temática do circo já surgia como matéria encaixada na sua cinematografia. Nesse sentido imagético, uma das sequências mais esperadas do novo filme era a recriação da chamada "parada dos elefantes cor-de-rosa", o magistral delírio de Dumbo e do rato Timóteo com uma boa dose de champanhe, em que as bolhas da bebida se transformam em figuras ritmadas ao som da música... E se Burton não esquece essa referência, feita num subtil apontamento visual, convenhamos que era difícil conceber algo comparável à inventividade do traço da animação..Por outro lado, há uma mensagem do original que se mantém intacta: a crítica aos maus-tratos a que os animais estão sujeitos nos circos. Walt Disney foi das primeiras personalidades americanas a manifestar desprezo por esses excessos ocultos do entretenimento. Algo que ficou expresso nesse filme, através das humilhações do protagonista e do afastamento forçado da sua mãe. Ora, Burton recupera aqui o comentário transfigurando-o num epílogo lúdico e sem rodeios..Ao fim e ao cabo, em plena era de remakes dos clássicos da Disney em imagem real, Dumbo consegue, pela mão de Tim Burton, extravasar a mera competência da obra de indústria. Está a meio caminho entre o sofisticado produto de série e o grande empreendimento que põe o deslumbre das proezas digitais ao serviço do coração. E embora não seja um Eduardo Mãos de Tesoura, vislumbra-se aqui uma sensibilidade semelhante, ao mesmo tempo que se procura reacender o gosto por uma certa inocência infantil, em aberto contraste com o cinismo moderno. Na essência, é essa capacidade de dar fôlego às emoções genuínas, para lá do ímpeto comercial, que faz vingar este regresso à tela de um dos mais comoventes imaginários infantis: o elefante de alma delicada que voa e ensina a espantar os nossos medos..*** Bom