De uma maneira ou de outra, as imagens de Joe Biden, primeiro como candidato, depois como presidente eleito dos EUA, ficarão para sempre associadas à figura de Donald Trump nos nossos ecrãs, acumulando mentiras, primeiro sugerindo que a eleição ia ser uma fraude, depois repetindo que os resultados estavam viciados. Dir-se-ia que na perceção do mundo que construímos através desses ecrãs passámos a viver no interior de um sistema visual em que cada imagem, por mais pura ou desinteressada que se apresente, está condenada a ser posta em causa por alguma outra imagem. No caso de Trump, mesmo antes (muito antes) das obscenas imagens da invasão do Capitólio, em Washington, o seu empenho em minar os resultados do voto popular já suscitava uma pergunta que, sendo mediática, é necessariamente cultural: até que ponto o efetivo poder de Donald Trump sempre envolveu uma hábil gestão das suas imagens televisivas? O incómodo que a pergunta suscita pode ser medido pelo silêncio que a tem recoberto: dentro ou fora do espaço audiovisual, quase ninguém a formula. Uma coisa é certa: antes de vencer as eleições de 2016, Trump possuía já uma considerável filmografia. E não apenas através do protagonismo em The Apprentice, programa de "reality TV" que produziu e apresentou entre 2004 e 2015. Além de várias participações em séries televisivas, incluindo O Príncipe de Bel-Air (1994) e O Sexo e a Cidade (1999), foi surgindo em pequenos papéis em filmes como Sozinho em Casa 2 (1992), de Chris Columbus, Celebridades (1998), de Woody Allen, ou Zoolander (2001), de Ben Stiller. Com uma particularidade, de uma só vez narrativa e simbólica, talvez uma das chaves para compreendermos o seu poder mediático: Trump interpreta Trump. As suas personagens são sempre reencarnações de si próprio, afinal estabelecendo um princípio que, como bem sabemos, definiu a sua presidência: não há fronteiras entre realidade e ficção. Numa perspetiva perversa, podemos acrescentar que a performance de Trump como intérprete de Trump reflete também um verdadeiro "desporto" nacional. A saber: a proliferação de representações dos Presidentes dos EUA em cinema e televisão.. A lista dessas representações é imensa, plural e contraditória, obviamente excedendo o âmbito deste texto. Em qualquer caso, vale a pena sublinhar as muitas ambiguidades que a pontuam. Recordemos o exemplo de Richard Nixon, tal como surge retratado em Nixon (1995), de Oliver Stone. Convenhamos que Stone, o cineasta de Platoon (1986), não será, por certo, um grande admirador da gestão "nixoniana", o que não impede que o seu filme possua uma aura visceralmente trágica: as componentes mais sinistras da personagem cruzam-se com uma perturbante vulnerabilidade humana. Interpretado pelo genial Anthony Hopkins, é nesse filme que Nixon, contemplando o retrato de John F. Kennedy, num corredor da Casa Branca, tem este desabafo: "Quando eles olham para ti, veem aquilo que querem ser. Quando olham para mim, veem o que são." Stone é mesmo um "especialista" das figuras presidenciais. Realizou JFK (1991), obra-prima em torno da memória de John F. Kennedy (mais especificamente, sobre a investigação do seu assassinato), e ainda o bizarro W. (2008), sobre George W. Bush, numa arriscada composição de Josh Brolin, em que a constatação realista das atribulações do poder político se confunde com as peripécias de uma farsa sempre à beira do burlesco.. Não esqueçamos, porém, que a perceção das funções do Presidente dos EUA tem passado muitas vezes pela encenação de figuras que não pertencem à história. Para muitos espetadores, tal perceção está ligada à série televisiva, criada por Aaron Sorkin, The West Wing/Os Homens do Presidente (1999-2006), com Martin Sheen a compor Josiah Bartlet, presidente democrata fictício. Com uma componente dramática que está longe de ser secundária: o jogo do poder apresenta-se como um teatro de palavras em que "falhar" uma cena pode implicar irreversíveis desastres políticos. Ironicamente, o título português da série é "roubado" a Os Homens do Presidente (1976), o filme de Alan J. Pakula sobre a investigação jornalística do caso Watergate e a subsequente queda de Richard Nixon.. Dir-se-ia que estamos perante um jogo universal. Assim como, ao longo dos séculos, os textos de Shakespeare têm inspirado as mais variadas "transposições", também algumas abordagens do mundo da política foram "deslocadas" de um contexto para outro. Lembremos o caso da notável série americana House of Cards (2013-2018): as convulsões vividas pelo presidente Frank Underwood (Kevin Spacey), ainda que indissociáveis do contexto americano, tiveram como inspiração a mini-série britânica com o mesmo título (1990), por sua vez baseada no livro House of Cards (1989), de Michael Dobbs, sobre lutas internas da cena política de Londres. Um dos casos mais desconcertantes será a comédia Wag the Dog (1997), de Barry Levinson, outro filme muito esquecido, lançado entre nós com o título Manobras na Casa Branca. O presidente (Michael Belson) nem sequer tem uma presença significativa, a não ser como aquele que despoleta uma crise de comunicação e imagem, ao assediar uma jovem na Sala Oval da Casa Branca. O seu staff, incluindo o especialista em situações de crise interpretado por Robert De Niro, estabelece um estratégia: criar "factos políticos" que possam ocultar o escândalo. Perante a urgência de inventar uma ficção que se possa "vender" aos meios de comunicação, é mesmo convocado um produtor de Hollywood, composto por um delirante Dustin Hoffman, para elaborar uma narrativa "alternativa"... O que se traduz numa surpreendente declaração bélica: os EUA entram em guerra com a Albânia, ainda que seja uma guerra "fabricada" em estúdio.. O impacto de Wag the Dog foi tanto maior quanto a presença do filme nas salas dos EUA coexistiu com a explosão de um verdadeiro escândalo presidencial. A saber: o caso das relações de Bill Clinton com Monica Lewinsky. Não poucas vezes, com o passar dos anos, o filme passou a ser citado como um "reflexo" desse turbilhão moral que abalou a América, pelo que importa, pelo menos, repor a objetividade do calendário: o chamado "Monicagate" foi revelado publicamente a 17 de janeiro de 1998; Wag the Dog estava em exibição desde o dia de Natal de 1997.. Seja como for, seria errado supor que a filmografia "presidencial" é um fenómeno das últimas décadas, ou mesmo pós-Segunda Guerra Mundial. Aliás, importa também referir que tal filmografia está longe de se limitar ao que, tradicionalmente, se dá a designação académica de "reconstituições" históricas. Citemos o exemplo esclarecedor de Union Pacific (1939), não exatamente um retrato da cena política, antes um "western" épico de Cecil B. De Mille sobre a construção do caminho de ferro (entre nós chamado Aliança de Aço): nele encontramos a personagem de Abraham Lincoln e também, ainda com o estatuto de general, o futuro presidente Ulysses S. Grant, interpretado por Joseph Crehan. Figura muito popular do período mudo e dos primeiros tempos do sonoro, Crehan "especializou-se" mesmo na interpretação de Grant, como tal surgindo em nove filmes, incluindo Todos Morreram Calçados (1941), e Rio da Prata (1948), ambos com Errol Flynn, ambos dirigidos por Raoul Walsh.. Na transição do mudo para o sonoro, é fundamental citar o exemplo de David W. Griffith, "pai" da gramática narrativa clássica, pioneiro na abordagem de muitas convulsões históricas dos EUA, nomeadamente em O Nascimento de uma Nação (1915), filme em que, aliás, também surge a personagem de Grant, neste caso interpretado por Donald Crisp. Na saga nacional América (1924), Griffith incluiria as figuras de mais dois presidentes, George Washington e Thomas Jefferson. Na fase final da sua carreira, já utilizando o som, filmou o seu Abraham Lincoln (1930), protagonizado por Walter Huston.. Lincoln é, seguramente, o mais representado dos presidentes dos EUA. Até mesmo no recente turbilhão de produções derivadas da retórica dos super-heróis. Em 2012, nessa apoteose do disparate que é Diário Secreto de um Caçador de Vampiros, de Timur Bekmambentov, o 16º presidente americano surgiu mesmo com esse estatuto: caçador de vampiros... Também na televisão, Lincoln tem sido frequentemente recordado. Entre as referências mais populares, encontramos duas mini-séries: Norte e Sul (1985) e Lincoln (1988), protagonizadas por Hal Holbrook e Sam Waterston, respectivamente. Mas é numa majestosa produção cinematográfica - Lincoln (2012), de Steven Spielberg, sobre o nascimento da legislação que estipularia o fim da escravatura - que encontramos um dos momentos maiores desta odisseia presidencial.. Numa conjuntura de produção que tende a favorecer as aventuras "juvenis", Spielberg, apesar do seu prestígio e dos muitos milhões que deu a ganhar à indústria, encontrou sérias dificuldades para montar o projecto de Lincoln - houve mesmo quem lhe sugerisse que a melhor solução seria uma mini-série... Além disso, Daniel Day-Lewis resistiu a aceitar o papel central, argumentando que a sua identidade inglesa aconselhava a que não assumisse uma personagem tão forte no imaginário "made in USA". Curiosamente, em Amistad (1997), sobre uma revolta de escravos em 1839, Spielberg já tinha dirigido um ator escocês, Anthony Hopkins (o "Nixon" de Stone...), no papel de um presidente americano, John Quincy Adams. Depois de um ano de reflexão, Daniel Day-Lewis acabou por aceitar, informando Spielberg que já tinha percebido como "reproduzir" a voz de Lincoln... Tendo em conta que não existem registos sonoros de Lincoln, é caso para dizer que a representação da história pode ser a mais maravilhosa das invenções.