Doping: federação absolve campeão e irrita Espanha

Alemayehu Bezabeh estava prestes a ser submetido a uma transfusão sanguínea quando foi detido pela Guarda Civil espanhola, no âmbito da "Operação Galgo", contra uma rede de doping. Mas o campeão europeu de crosse, em 2009, foi absolvido pela Real Federação Espanhola de Atletismo (RFEA), o que irritou o governo e vários atletas espanhóis.
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O Conselho Superior de Desportos (CSD) deve recorrer da decisão, segundo anunciou o próprio secretário de Estado dos Desportos, Jaime Lissavetzki. E vários atletas e treinadores mostraram publicamente a sua revolta para com a decisão da RFEA, chegando ao ponto de alguns considerarem que "em Espanha os que mandam protegem os batoteiros" e que o acórdão mostra que no atletismo espanhol "há barra livre" para o doping. José Maria Odriozola, presidente da RFEA, é o principal alvo das críticas.

O atleta de origem etíope encontrava-se na companhia do seu treinador, Manuel Pascuas Piqueras, e de Alberto León, ex-ciclista de BTT, quando a Guarda Civil interveio. León, que entretanto se suicidou, é considerado o principal operacional da rede e Pascuas Piqueras era alegadamente quem coordenada os serviços de dopagem prestados aos atletas que treinava.

No dia em que a Guarda Civil travou a transfusão sanguínea, Bezabeh e o seu agente foram à sede da RFEA para prestar depoimento de imediato. O atleta alegou que pensava que o sangue, que lhe fora tirado semanas antes, era apenas para fazer análises. Ana María Ros, instrutora do comité de competição da federação propôs um ano de suspensão, à semelhança de outros casos de atletas que confessaram e colaboraram com investigações, como Paquillo Fernández ("Operação Grial") e Yesenia Centeno (acusou eritropoietina),

Um dos problemas para aplicar a pena normal (dois a quatro anos) era o facto de a legislação espanhola não considerar como infracção a tentativa de doping, ao contrário dos regulamentos e códigos internacionais, revelou recentemente o El País. Mas o comité de competição foi mais longe ao considerar que o atleta deveria ser absolvido por essa falha na lei e por ausência de provas, isto apesar dos elementos obtidos na investigação da Guarda Civil, incluindo uma bolsa com sangue de Bezabeh.

Odriozola argumenta que Bezabeh "foi vítima" do seu treinador, Pascuas Piqueras. O atleta que já conquistou três medalhas de ouro europeias ao serviço da selecção espanhola (uma individual e duas colectivas) poderá assim competir nos Jogos Olímpicos de Londres 2012, o que seria proibido pelos regulamentos se tivesse sido condenado a uma suspensão superior de seis meses.

Revolta, críticas e eventual recurso

Isso só acontecerá se um eventual recurso não tiver sucesso. Fontes do CSD disseram ao diário desportivo AS que "os serviços jurídicos estão a estudar a viabilidade de um apelo", que terá de acontecer num prazo de 15 dias. Mas o facto de a lei não especificar a tentativa de dopagem como infracção é um problema, reconhece o organismo sob tutela do mesmo governo que aprovou a lei em vigor: "O problema está resolvido para o futuro com a modificação aprovada na passada sexta-feira, mas não agora."

O secretário de Estado dos Desportos insiste mesmo que deverá haver recurso. "Há uma confissão do próprio desportista à federação, o que faz com que a mesma federação nem sequer o inclua na sua petição para bolsas, quando sim inclui outros supostamente implicados. O CSD não deve ficar de braços cruzados. Será juridicamente entendível, mas não parece muito compreensível e há um mal-estar entre um determinado grupo de atletas", vincou Lissavetzy.

Uma centena de atletas assinou um manifesto contra o doping após a "Operação Galgo". Antonio David Rodríguez, um dos impulsionadores dessa acção, critica a falha na legislação. Pablo Villalobos, que colaborou com Rodríguez neste manifesto, é mais optimista e acredita que será feita justiça no final e que ainda há possibilidade de recorrer.

Mas, na generalidade, os atletas mostram-se pouco optimistas. Dois usaram o Twitter para exprimir as suas opiniões sobre a absolvição. "Lamentável e vexatória a decisão da RFEA de absolver Bezabeh da sua tentativa de dopagem. Tolerância zero para os batoteiros", ironizou, citado pelo AS, Chema Martínez, campeão europeu dos 10000m em 2002, medalha de prata em 2006 e vice-campeão da maratona em 2010. "Ilibaram Bezabeh? De certeza que Odriozola vai à Etiópia informá-lo e assim cobrar diárias... Isso sim, legais, claro. Recomendo ter em casa uma cópia da lei antidopagem. Caso se acabe o rolo de papel...", sugeriu García Bragado.

"Aos meus protegidos ninguém lhes toca"

Javier Moracho, ex-atleta que aspira ao lugar de Odriozola, considera que esta decisão indicia que, no final, todos os visados pela "Operação Galgo" serão inocentados, incluindo Marta Domínguez, campeã mundial dos 3000m obstáculos e vice-presidente suspensa da RFEA. "Houve uma tentativa de transfusão como está demonstrado e reconhecido. Havia uma bolsa com sangue extraído previamente e que não foi reinjectado porque interveio a justiça. Algum culpado haverá. Até uma sanção de um ano me pareceria demasiado baixa", vincou Moracho.

Jesús España também foi duro para com a RFEA, apesar de afirmar ao AS que não pode "dizer a metade" do que pensa porque senão não volta a correr na sua vida: "Há um comité técnico que escolhe os que lhe apetece e não convém ficar de mal para com eles. Se confessou e foi absolvido, então vale tudo. Quem se dopa deve ser sancionado, mas em Espanha os que mandam protegem os batoteiros."

"A mensagem de Odriozola é a seguinte: aos meus protegidos ninguém lhes toca e disso me encargo eu", diz, por seu turno, o treinador Dioni Alonso, que acusa o presidente da RFEA de fazer "o que lhe apetece": "Há que reforçar as normas eleitorais para que personagens como Odriozola não se perpetuem no poder. A culpa também é nossa, porque não pusemos em cima da mesa uma moção de censura. E quando digo todos, digo treinadores, atletas, juízes, clubes. Desgraçadamente, ele controla tudo. Isso fez ele de forma bem feita."

Dioni Aloso considera que, com esta decisão, Odriozola avisa que "nada se vai passar" relativamente aos envolvidos na "Operação Galgo". O técnico não ficará surpreendido se o seu colega de profissão Pascuas Piqueras regressar à federação. "Outra mensagem que eu percebi é de que aqui há barra livre. Resta-nos que o CSD recorra e lhes trave os pés e que também o faça a IAAF [Associação Internacional das Federações de Atletismo]", concluiu.

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