Donald Trump com futuro incerto disse que voltará "de alguma forma"
Donald Trump tinha aterrado há menos de uma hora no calor da Florida quando, na ventosa e fria Washington D.C., deixava oficialmente de ser presidente, às 11.48, quando Joe Biden jurou o cargo no Capitólio. Trump foi o primeiro presidente em quase 150 anos a não assistir à transferência do poder, optando por deixar a capital ainda à frente dos destinos dos EUA. "Voltaremos de alguma forma", disse na despedida na base aérea de Andrews, lembrando que os últimos quatro anos foram uma honra e um privilégio. Mas se o seu futuro próximo passa por jogar golfe no clube de Mar-a-Lago, implica também um processo de impeachment no Senado, que poderá complicar os seus planos.
O último dia de Trump na Casa Branca começou com o rescaldo dos 70 indultos e das 73 comutações de penas que decretara na véspera. Entre os beneficiados, estava o arquiteto da sua campanha de 2016, Steve Bannon, vários antigos membros do Congresso e até o rapper Lil Wayne. Mas já na última viagem como presidente no Air Force One, Trump emitiu mais um perdão total. O sortudo foi o seu antigo advogado Albert J. Pirro, ex-marido da juíza Jeanine Pirro, uma das maiores defensoras do presidente na Fox News, que cumpriu uma pena de 11 meses de prisão por fraude há quase 20 anos.
Terá sido a última ação da sua presidência, que ficará marcada pela negativa por causa da pandemia de coronavírus, que já causou mais de 400 mil mortes nos EUA. E pela violência que se viveu no Capitólio a 6 de janeiro, quando os seus apoiantes interromperam a sessão conjunta que oficializava a vitória de Biden - uma vitória que o próprio Trump nunca reconheceu, apesar de ter mantido a tradição, deixando uma nota ao sucessor na Casa Branca. O presidente foi acusado pela Câmara dos Representantes de ter incitado à violência, num discurso diante da multidão, razão pela qual foi alvo de um histórico segundo impeachment que agora terá que correr no Senado.
Mas Trump não mencionou nada disso na despedida, diante de poucas centenas de apoiantes, na base aérea de Andrews. Optou por centrar o discurso naquilo que disse serem as suas conquistas, falando na pandemia no passado para destacar o desenvolvimento das vacinas em tempo recorde e voltar a insistir que antes de a covid-19 ter aparecido, os EUA tinham a melhor economia de sempre - algo que os especialistas já negaram. E desejou "sorte" à nova Administração, sem mencionar o nome de Biden, explicando que tinha erguido "as fundações" para ele. "Espero que não aumentem os impostos, mas se o fizerem, eu avisei-vos", disse, prometendo ficar atento.
Trump, ao estilo de campanha, chegou no helicóptero Marine One quando se ouvia a música Gloria, de Laura Branigan, e deixou a base a bordo do Air Force One ao som de My Way, de Frank Sinatra. Pelo meio, as cerca de 500 pessoas que estiveram presentes também ouviram Y.M.C.A dos Village People, Don"t Stop Believin" dos Journey, além de uma salva de 21 canhões. O presidente foi recebido aos gritos de "We love you" e "Obrigado", tendo dito que "foi uma honra e um privilégio" ocupar o cargo ao longo de "quatro anos incríveis".
No discurso, não poupou elogios à família, dizendo que eles podiam ter escolhido uma vida mais fácil e que "ninguém faz ideia" do quanto trabalharam. "Deixámos tudo em campo", afirmou, usando uma expressão desportiva. Agradeceu em especial à primeira dama, Melania Trump, dizendo que ela é "muito popular entre as pessoas" - na realidade, é a mais impopular de sempre, com 42% de opiniões favoráveis (ainda assim maior do que o marido, cuja aprovação é de apenas 34%) e 47% de desfavoráveis. E passou-lhe o microfone por momentos. Melania disse que foi uma honra ser primeira-dama e que todos ficarão nas suas orações.
No futuro próximo não é difícil ver o que Trump, agora ex-presidente, fará: jogará golfe. Se durante os quatro anos que passou na Casa Branca terá jogado golfe mais de 300 vezes, agora que vai estar em Mar-a-Lago, na Florida, ao lado de dois dos seus campos, é seguro dizer que será presença assídua no green. Depois, como outros ex-presidentes, poderá escrever as suas memórias ou voltar aos negócios.
Mas, a curto prazo, Trump terá que enfrentar o primeiro desafio: o impeachment. O Senado tem agora uma maioria democrata, porque a vice-presidente Kamala Harris tem o voto de desempate, mas para o processo de destituição passar - e não se sabe quando começará a ser discutido - tem que ser aprovado por dois terços dos senadores (ou seja 67). Muitos republicanos já começaram a abandonar Trump e a criticá-lo abertamente por causa da intervenção que terá incentivado a violência, mas daí até votarem a favor do impeachment ainda vai um longo percurso.
Caso acabe por ser destituído, Trump poderá ver os senadores decidirem também que não poderá mais concorrer a cargos públicos - afastando-o definitivamente das eleições presidenciais de 2024. Mas os quatro anos que passou na Casa Branca garantiram-lhe uma base de apoio que poderá mobilizar para outra candidatura - a da filha Ivanka Trump é das mais faladas. Basta que, depois de ter perdido o seu megafone - ao ser afastado do Twitter e de outras redes sociais -, encontro uma nova plataforma para se relacionar diretamente com os apoiantes. Resta saber se os eventos de 6 de janeiro não irão estragar os planos que possa ter para criar um canal de televisão online.
E depois há os processos judiciais que poderá que enfrentar nos tribunais: poderá ser acusado, por exemplo, por causa do telefonema no qual pressionou o secretário de Estado da Geórgia a arranjar votos que garantissem a sua vitória.
Supremo Trump nomeou três juízes para o Supremo Tribunal - Neil Gorsuch (2017), Brett Kavanaugh (2018) e Amy Coney Barrett (2020). O tribunal vai pender durante anos para o lado dos conservadores.
Impeachment Trump será sempre o presidente que, em quatro anos, foi alvo de dois processos de destituição - um por causa de alegado abuso de poder em pressões à Ucrânia e o outro por "incitar à insurreição" na invasão do Capitólio.
Imigração Eleito com a promessa de construir um muro com o México, Trump teve tolerância zero com os imigrantes. Marcaram as imagens de crianças em jaulas, após serem separadas da família na fronteira.
Armas O massacre de 17 pessoas na secundária de Parkland, em fevereiro de 2018, mobilizou milhares de jovens para o tema do controlo de armas e contra Trump.
Racismo A morte de George Floyd, durante a detenção em maio de 2020, desencadeou uma onda de protestos e de violência a nível nacional. Trump só sob pressão condenou os grupos supremacistas.
Rússia Trump queixou-se da "caça às bruxas" do procurador-especial Robert Mueller, que investigou o alegado conluio com a Rússia nas presidenciais de 2016.
Diplomacia Trump rasgou o acordo nuclear com o Irão - assim como o acordo do Clima de Paris - e lançou a guerra comercial com a China. Também apertou a mão a Kim Jong-un e ajudou Israel a restabelecer relações com vários países árabes.