Um dia depois de o procurador especial Robert Mueller ter testemunhado no Congresso sobre o relatório que produziu sobre a interferência russa nas eleições de 2016, não tendo conseguido provar uma concertação entre Moscovo e a campanha de Trump, o empresário nova-iorquino manteve a famosa conversa com o presidente ucraniano que levou ao processo da sua destituição..Menos de uma semana depois de o Senado ter rejeitado os dois artigos - abuso de poder e obstrução ao Congresso - pelos quais Trump foi alvo de impeachment, o mesmo padrão foi seguido. Nos últimos dias, duas testemunhas foram afastadas dos seus postos, e sobre uma delas o presidente sugeriu poder vir a sofrer consequências disciplinares; pressionou a juíza que tem os casos dos seus homens próximos e queixou-se da "muito injusta e horrível" recomendação sobre a pena de prisão que os procuradores iriam pedir ao seu ex-conselheiro Roger Stone..Além disso, a procuradora que supervisionava o caso, Jessie Liu, saiu da procuradoria de Washington D.C. depois de ter sido convidada para um cargo no Departamento do Tesouro e, sem mais explicações, o convite caiu. Segundo a NBC, teria sido de esperar que Liu permanecesse no cargo até ser confirmada pelo Senado. Foi substituída por um antigo procurador federal, Timothy Shea, antes de a equipa ter concluído a recomendação da pena a Stone..Demissões em cadeia.Os quatro procuradores do processo pediram afastamento do caso de Stone na terça-feira, depois de o Departamento de Justiça ter revertido a sentença proposta por eles de sete a nove anos de prisão na sequência da condenação, em novembro, pelos crimes de ter mentido ao Congresso, manipulado testemunhas e obstruído a investigação da Câmara de Representantes sobre se existiu um conluio entre a equipa da campanha de Trump e a Rússia. Em teoria, Stone, de 67 anos, enfrentava uma pena de até 50 anos de prisão..O anúncio da decisão do Departamento de Justiça aconteceu depois de Trump ter criticado o processo no Twitter e originou novas críticas ao comportamento do presidente, bem como ao procurador-geral. "Os verdadeiros crimes estavam do outro lado e nada lhes acontece. Não posso permitir este aborto da justiça!", escreveu Trump..Um funcionário do Departamento de Justiça disse que as autoridades decidiram intervir e procurar uma sentença mais curta porque tinham sido apanhados de surpresa pela recomendação inicial. "O departamento considerou a recomendação extrema e excessiva e grosseiramente desproporcional aos delitos de Stone", disse uma fonte sob anonimato, citada pelo Politico. A mesma fonte garantiu que não houve contacto da Casa Branca com o Departamento de Justiça..Mais tarde, o próprio Trump disse aos jornalistas que não falou com os funcionários do Departamento de Justiça, embora tenha dito que podia fazê-lo se quisesse. "Tenho o direito absoluto de o fazer. Não me meto em coisas num grau em que as pessoas não iriam acreditar, mas não falei com eles", disse Trump, numa aparente contradição..O Departamento de Justiça é um órgão independente..Na quarta-feira, o presidente limpou as mãos e ao mesmo tempo elogiou e responsabilizou o procurador-geral pela interferência, numa mensagem de elogio. "Parabéns ao procurador-geral Bill Barr por assumir um caso que estava totalmente fora de controlo."."Nunca vi uma coisa destas acontecer. Ficaria chocado se a juíza não chamar o procurador a tribunal para se explicar", comentou um antigo procurador e quadro do FBI Gregory Brower..A catadupa de demissões começou pouco depois de o Departamento de Justiça ter alterado o enunciado da recomendação a entregar à juíza. Dois antigos membros da equipa especial de Robert Mueller, Aaron Zelinsky e Adam Jed, foram os primeiros a sair. O primeiro anunciou inclusive a saída de Washington. Seguiram-se os procuradores Michael Marando e Jonathan Kravis. As decisões de sentença são, em última instância, da responsabilidade do juiz, que tanto pode acolher a recomendação original como a retificada..A revisão de uma decisão dos procuradores por parte das chefias do Departamento de Justiça, em especial depois de a recomendação da pena ter sido entregue ao tribunal, é considerado um acontecimento raro, tal como são raras as demissões coletivas de procuradores..A juíza Amy Berman Jackson repreendeu várias vezes Roger Stone pelo seu comportamento nas redes sociais enquanto decorria o julgamento, a ponto de o proibir de recorrer a essas ferramentas depois de ter publicado uma fotografia da juíza com a imagem de uma mira de uma arma ao lado..Mas para o companheiro de negócios de décadas de Stone, Donald Trump, as perguntas que se impunham foi saber se esta era a juíza que "colocou Paul Manafort em solitária, algo que nem mesmo o mafioso Al Capone teve de suportar", e como "tratou a vigarista Hillary Clinton?"..Manafort, ex-diretor de campanha de Trump, foi condenado a sete anos e meio de prisão por conspiração contra os EUA, manipulação de testemunhas e obstrução. A solitária, segundo documentos oficiais, incluía casa de banho própria, uso do telemóvel e do computador pessoais e uma hora e meia diárias para visitas. Quanto a Hillary Clinton, o Departamento de Justiça concluiu há cerca de um mês, após dois anos de investigações ao uso de e-mails e de um servidor privado, que não há fundamentos para processar a ex-secretária de Estado..Hillary ataca no Twitter.A candidata democrata às eleições de 2016 respondeu à letra e igualmente no Twitter: "Compreende que intimidar juízes é o comportamento de fascistas de Estados falhados?" Mais tarde, voltou à carga: "Trump está a usar os poderes da presidência como um tirano - agora, para recompensar os cúmplices e perseguir as testemunhas que se atrevem a falar contra ele. Isto deve preocupar-nos e revoltar-nos a todos.".As testemunhas a que Hillary Clinton aludiu são Gordon Sondland e Alex Vindman. O primeiro, um empresário hoteleiro que foi agraciado com o cargo de embaixador na União Europeia após ter apoiado a tomada de posse de Trump com um milhão de dólares, exonerado do cargo depois de ter confirmado à comissão de inquérito da Câmara dos Representantes que "seguia as ordens do presidente". O segundo, assessor do Conselho de Segurança Nacional, considerou o comportamento de Trump "impróprio" em relação ao homólogo ucraniano. Foi demitido das suas funções e expulso sob escolta da Casa Branca. O mesmo destino teve o seu irmão gémeo, que trabalhava também no mesmo órgão, mas como advogado..Sobre Alex Vindman, que é coronel do exército, Trump sugeriu que o Pentágono poderia considerar a instauração de uma ação disciplinar. "Isso vai ser com os militares. Vamos ver. Eles vão certamente, imagino, examinar isso", disse o presidente..Investigações a caminho?.Outros democratas comentaram os mais recentes acontecimentos. O líder dos democratas no Senado, Chuck Schumer, pediu uma investigação ao inspetor-geral do Departamento de Justiça. "Estamos a assistir a uma crise inaudita no Estado de direito nos Estados Unidos. É uma crise da responsabilidade do presidente Trump. E foi permitido e encorajado por todos os republicanos do Senado que tiveram demasiado medo para lhe fazer frente", afirmou..Já o presidente da Comissão dos Serviços Secretos da Câmara, Adam Schiff, disse que será "um flagrante abuso de poder se o presidente Trump tiver de facto intervindo para reverter as recomendações dos procuradores"..A senadora e ex-candidata às primárias Kamala Harris, por sua vez, mencionou "dois sistemas de justiça" nos EUA, "um para Trump e seus amigos e outro para os restantes", e apelou para que o Senado aja com a realização de audições para analisar o caso..Do lado republicano, a senadora Lisa Murkowski quebrou o silêncio, ao afirmar que não gostou de ver este "encadeamento de acontecimentos". "Penso que a maioria das pessoas nos EUA olha para isto e acho que simplesmente não parece correto."