No ano do Senhor de 1507, estando Afonso de Albuquerque em Ormuz, foi visitado por um enviado do xá da Pérsia com propostas de paz e cooperação militar face à ameaça comum que atormentava persas e portugueses: a dos turcos otomanos, cujo poderio não cessava de crescer tanto no Médio Oriente, como no Mediterrâneo. Precedido pela fama de guerreiro implacável, Albuquerque conhecia, porém, a importância da diplomacia e acedeu à proposta, enviando, por sua vez, à presença do xá, um representante da Coroa de Portugal. Assim se iniciaram, segundo vários historiadores de ambos os países, as relações diplomáticas entre nações tão distantes uma da outra, cuja antiguidade (e razoável constância) foi assinalada na passada sexta-feira no seminário "500 anos de relações Portugal-Irão", realizado no Arquivo Nacional da Torre do Tombo (e acompanhado por uma exposição documental que poderá ser visitada até 29 de outubro). Entre os participantes esteve Mohammad Ali Kazambeyki, professor do Departamento de História e Civilização das Nações Islâmicas da Universidade de Teerão, que encontra na suavidade de Lisboa uma curiosa similitude com as margens do mar Cáspio em que nasceu. Fomos ouvi-lo..Veio a Lisboa para um seminário que assinala os 500 anos das relações diplomáticas entre Portugal e o seu país. Como explica esta constância entre dois países geograficamente tão distantes entre si (e também culturalmente tão diferentes)? A distância é muita, é verdade. Mas em minha opinião houve sempre muitos campos de contacto e cooperação. O domínio dos portugueses em Ormuz, durante aproximadamente um século, nem sempre foi pacífico nem sempre nos foi favorável mas já esquecemos qualquer momento menos agradável. Sabe porquê? Porque as outras potências europeias, que vieram depois, como os britânicos, foram bastante piores para nós. Por outro lado, se estudarmos bem a documentação existente, encontraremos, para além desses pontos de tensão, muitos vestígios de autêntica cooperação comercial, militar e política entre os dois países no período da dinastia safávida (1501-1722)..O que justifica a cooperação militar? A necessidade de enfraquecer um inimigo comum como eram, nesse período, os turcos otomanos? Sem dúvida. Em vários pontos do Irão podemos ainda encontrar canhões portugueses, que nos foram cedidos, em momentos de maior conflitualidade com o Império Otomano. Ao longo de toda a dinastia safávida, que corresponde, de algum modo, à idade de ouro daquela potência, havia, por um lado, uma competição feroz entre persas e otomanos, no Médio Oriente, e, por outro, no Ocidente, entre estes e os reinos cristãos, nomeadamente Portugal, Espanha, França e o Sacro Império Romano-Germânico. Teoricamente, do ponto de vista religioso, dir-se-ia que estávamos impedidos de nos aliarmos com potências cristãs para darmos combate aos otomanos, muçulmanos como nós, mas a verdade é que eles nos atacavam (nomeadamente as nossas frotas comerciais) e tínhamos de nos defender. De resto, também houve reinos europeus que, em determinados momentos, se aliaram aos turcos contra os seus irmãos de religião..O seu período de estudo é o da dinastia Qajar [no poder desde meados do século XVIII até, já no século XX, à chegada da última dinastia persa, os Pahlavi]. Como caracteriza as relações com Portugal nesse longo período? Nos séculos XVIII e XIX as relações comerciais com portugueses não eram tanto com a Europa, mas com o vosso antigo território de Macau. Na segunda metade do século XIX, a economia mundial mudou significativamente e o Irão tornou-se o principal produtor mundial de ópio. Ora, foi também nesse período que Macau se tornou o principal porto de entrada deste produto na China. Sabemos que foi assim, embora não haja propriamente fontes estatísticas que demonstrem a importância desse comércio, nem em Portugal nem nos nossos arquivos. Já no século XX começámos a importar produtos químicos de Portugal, nomeadamente tintas para a indústria têxtil. E, claro, o Irão exportava para Portugal um único produto: o petróleo..Único, mas de importância vital. Sim, mas não eram os iranianos quem verdadeiramente exportava. O lucro ia todo para as grandes petrolíferas britânicas porque, durante décadas, eram elas que tinham a concessão de exportação do nosso petróleo para toda a Europa..Veio a este seminário falar também da presença do Irão nos arquivos portugueses. Que tipo de documentos podemos encontrar? Alguns enviados pelas autoridades persas, outros, provavelmente a maioria, são relatórios de funcionários do Estado português colocados na região. São fundos extremamente importantes para quem se proponha estudar a história não só das relações entre os dois países, mas para a própria história política do Irão e de outros países na área do golfo Pérsico. Claro que há a barreira da língua, que é difícil de superar porque estamos a falar de português dos séculos XVI a XVIII, não do que hoje é possível estudar numa universidade..As relações culturais entre os dois países acompanharam as comerciais? Há um elo desaparecido nas relações culturais entre os dois países embora no século XVI tenham sido enviadas missões portuguesas ao Irão. Posteriormente, quando já no século XVII se efetuou um corte nas relações políticas, também esses contactos foram interrompidos. Hoje é uma pena que a Fundação Gulbenkian tenha vários projetos no Iraque mas não tenha chegado ao Irão, ou que não haja um programa de intercâmbio de estudantes universitários. É muito interessante perceber que os portugueses foram o primeiro povo ocidental a compreender a importância geoestratégica do Irão e de toda a região do golfo Pérsico. Há cinco séculos, num mundo que não estava globalizado nem industrializado. Num mundo com outras fontes de energia, que não o petróleo. Somos dos países mais antigos do mundo - Portugal tem as fronteiras mais estáveis da Europa e o Irão é único da sua região que não foi configurado pelos tratados internacionais do século XX. Creio que todos teríamos a ganhar com o aprofundamento dessas relações.