Dois anos de pandemia e um inesperado mundo novo
"Não podemos resolver os problemas utilizando o mesmo tipo de pensamento que usámos quando os criámos"
Albert Einstein
Faz hoje, dia 11 de Março de 2022, dois anos que a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou o estado de pandemia pelo SARS-CoV-2. Tratando-se da segunda pandemia deste século - tendo a primeira ocorrido entre 2009 e 2010 pelo vírus da gripe A (H1N1) - a actual é a primeira documentada por um vírus não-influenza, neste caso um novo coronavírus, bem como a primeira cujo diagnóstico dos casos assentou em técnicas sofisticadas de confirmação laboratorial, nomeadamente amplificação de ácidos nucleicos ou PCR (Polymerase Chain Reaction ou Reação em Cadeia da Polimerase). Com base em tais técnicas, estão confirmados, à escala mundial, mais de 440 milhões de casos e mais de 6 milhões de óbitos. Um número, note-se, que não traduz o verdadeiro impacto da pandemia, dado que nem sempre foi possível confirmar laboratorialmente todos as situações suspeitas. Estima a OMS que o verdadeiro número de casos possa exceder duas a três vezes a contagem oficial e admitindo a revista The Economist um intervalo entre os 10 e os 20 milhões para a mortalidade.
A PCR permitiu, por um lado, um maior rigor diagnóstico à custa da subvalorização da contagem dos casos e, por outro lado, a monitorização em tempo real da evolução da estirpe ancestral de coronavírus identificada na cidade de Wuhan. De tal forma que entre Março de 2020 e Março de 2022, foram detectadas diversas variantes de preocupação, posteriormente designadas pelas letras do alfabeto grego, que rapidamente entraram no nosso léxico. Referimo-nos, por exemplo, à variante Alfa (responsável pela terceiras onda no nosso país), à mais perigosa variante Delta (para a qual a vacinação foi determinante) e à actual variante Ómicron (a mais transmissível e com valores próximos dos do vírus do sarampo). A PCR veio provar o que amplamente sabíamos: que os vírus evoluem e vão-se adaptando aos humanos. Iniciado este terceiro ano da pandemia, reconheçamos que por sua vez os humanos souberam evoluir e adaptar-se, sendo que neste processo de evolução e adaptação é possível identificar louvores, oportunidades e ameaças.
Se a ciência, em sede de planeamento e organização, outorgou o desenvolvimento de vacinas e o enquadramento das medidas de intervenção não farmacológica (como a máscara facial e a higiene das mãos), digna de louvor é, em boa verdade, a população.
Com efeito, durante esta pandemia assistimos à maior campanha de vacinação de sempre à escala mundial, cujos efeitos foram sendo quantificados em múltiplos estudos. A título de exemplo, segundo um estudo da OMS e do European Centre for Disease Prevention and Control, publicado na revista Eurosurveillance, entre Dezembro de 2020 e Novembro de 2021, foram evitados 402 181 e 14 222 óbitos em pessoas com 60 ou mais anos, residentes, respectivamente, na região europeia e em Portugal.
Na prática, só há vacinas eficazes se administradas e foi a adesão à vacinação a par do respeito pelas medidas de prevenção e de controlo da infecção que derrotaram a pandemia. Foram os vacinados que protegeram o todo - todo esse que inclui os não vacinados - e que permitiram a progressiva abertura e o início da desejável recuperação socioeconómica.
A pandemia levou à imposição de restrições e sacrifícios individuais em nome de um bem maior, a saúde pública. Mudar o curso da pandemia exigiu detecção, testagem, tratamento, isolamento, rastreamento e mobilização colectiva (que incluiu confinamentos, recolhimento obrigatório, encerramento de estabelecimentos, etc.). Ora, o sacrifício do indivíduo, feito em nome da saúde pública e em cumprimento dos requisitos científicos e legislativos aplicáveis, é válido, pertinente e adequado. O infortúnio adveio do recurso, pelo mundo fora, à situação pandémica para estabelecimento de regras em contravenção de processos democráticos (através, por exemplo, do controle da disseminação e do acesso à informação, da perseguição, inter alia, de adversários políticos, de jornalistas e de profissionais da saúde, etc.). Ou seja, a pandemia reforçou a importância de garantir uma democracia saudável, um sistema de justiça independente e eficaz e uma comunicação social forte e livre - factores indispensáveis, aliás, à literacia e à capacitação das populações.
O papel da OMS saiu igualmente fortalecido na vigilância, no alerta e na resposta à escala global, a par das intervenções de apoio humanitário e na correcção das desigualdades. A relevância institucional da OMS é absolutamente inegável e deve continuar a ser aproveitada com a mesma intensidade.
Na área da saúde, a pandemia veio ainda potenciar uma explosão de desenvolvimentos, o abrir de uma janela para o futuro com novas vacinas (por exemplo, contra sida, malária, tuberculose e doenças oncológicas), novos fármacos, linhas de investigação inovadoras e com a exponenciação da medicina de precisão.
A nível doméstico, a pandemia veio condicionar uma sobrecarga nas estruturas de saúde, de consequências potencialmente irreversíveis nalgumas situações, com os milhares de novos doentes com long covid e a recuperação do atraso das patologias não-covid, tais como no rastreio e no seguimento dos doentes com patologias oncológicas.
No plano internacional, merecem referência o agravamento das desigualdades, a politização do conhecimento, a desinformação e as ameaças à democracia.
O acesso desigual à saúde e à inovação, em particular à vacinação, com acréscimo de morbilidade e mortalidade nos países mais pobres e maior repercussão na recuperação e no desenvolvimento destes países veio agravar as desigualdades previamente existentes.
A politização do conhecimento com desvio da discussão científica para o terreno das convicções ideológicas e políticas agravou a intolerância, prejudicou a capacidade de resposta colectiva e desvirtuou o valor da ciência e do conhecimento.
A desinformação - frequentemente associada a interesses dissimulados e camuflados e potenciada pela ignorância, a ilusão do conhecimento e comportamentos narcísicos - consiste em problema nada trivial e que está na origem de intervenções por várias instituições, designadamente da OMS.
Por último, esgotado o perigo decorrente da pandemia, pode perdurar outra ameaça, um outro "vírus" que poderá varrer grande parte do globo sob a forma de uma recessão democrática. Há que combater e eliminar o legado jurídico da pandemia, nos seus contornos não democráticos, mas o processo de extinção desse legado normativo será mais simples e incomplexo em certos países e mais difícil ou quase impossível de reverter noutros.
Examinados os dois anos marcados pela pandemia, há que louvar a população cujo comportamento tornou possível a progressiva eliminação do surto viral, aproveitar as oportunidades de aprendizagem e de melhoria decorrentes do combate à covid-19 e eliminar as ameaças que com a peste emergiram.
Por fim, é impossível não assinalar que enquanto há cerca de cem anos, o início da pandemia da gripe espanhola (1918-1919), também conhecida pela "mãe de todas as pandemias", coincidiu com o fim da Primeira Guerra Mundial, assistimos, agora, a uma situação inversa com o início de um conflito bélico a coincidir com o crepúsculo de uma pandemia.
Esta é a altura certa de provarmos o quanto já aprendemos, como humanidade, na saúde e na doença, na alegria e na tristeza, na pobreza e na riqueza, na paz e na guerra, até que a morte nos separe.
Filipe Froes é pneumologista, consultor da DGS, ex-coordenador do Gabinete de Crise para a Covid-19 da Ordem dos Médicos e membro do Conselho Nacional de Saúde Pública
Patricia Akester é fundadora de GPI/IPO, Gabinete de Jurisconsultoria e associate de CIPIL, University of Cambridge
Escrevem de acordo com a antiga ortografia