Do tempo perdido ao tempo que ainda é preciso

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Quando, na década de sessenta, a revolta na área dos 3A (Ásia, África, América Latina), atingiu finalmente o sistema português, desafiando as vontades para outros rumos, afrontando as conceções tradicionais do mundo e da vida, destroçando os desprevenidos projetos de futuro, pondo entre parênteses a memória da paz que ainda não foi recuperada, e abalando o mais negligenciável dos fatores que era o regime político, pareceu a muitos que a maneira de lidar com os ventos da História seria ganhar tempo para encontrar e implantar soluções políticas viáveis. Em vez de ganho, o tempo foi largamente perdido, não obstante o esforço e os sacrifícios consentidos e queridos pela sociedade civil mobilizada, pelo enquadramento militar, pelas populações solicitadas por todos os quadrantes das fidelidades em competição, pela juventude chamada a adiar os projetos individuais para servir nas fileiras um projeto coletivo.

A imagem oficiosa desse período longo, foi tratada por responsáveis políticos em crónicas biográficas e depoimentos sobretudo na perspetiva dialogante da política externa, tendendo a não recolher qualquer notícia ou anotação do processo que se vivia no terreno com outros argumentos de mais pesados custos, a disputar o tempo que entretanto se esgotava no diálogo inconsequente e não se dispensava às reformas domésticas. Disse algures Foster Dulles que nunca leu um relatório dos seus agentes em que estes não demonstrassem ter ganho os diálogos em que participavam. A questão é que com os factos não se discute, e, por isso, as respostas cortantes, as observações infundadas, os comentários ácidos a pretensões despropositadas, os exemplos históricos óbvios que arrasam doutrinas de estadistas mal lembrados, os silogismos esmagadores contra invocados ventos da história, tudo mais hoje se perfila como destroços de imaginárias campanhas, enquanto no terreno se gastava a vida a ganhar o tempo que fora solicitado para as reformas adiadas e combatidas com satisfação dos interesses ultrapassados, e, por isso, sem poder vir a saber-se se elas viabilizariam uma evolução mais pacífica, porque de certo apenas temos o tempo perdido, que era de todos. Uma perda em que participaram doutrinadores como D. Sebastião de Resende, Bispo da Beira, ele próprio escondido pela penumbra envolvente da realidade ultramarina naquilo que respeitava à perceção metropolitana, onde raros tiveram notícia contemporânea da sua intervenção, que todavia foi notável na África em convulsão.

Consegui finalmente, em 1995, três décadas depois da sua morte, reunir em volume os seus trabalhos que pareceram mais significativos, e assim espero contribuir para a sua recuperação pela história do pensamento missionário português do fim do império. É parte principal dessa intervenção frustrada, com as mãos na realidade e com sentido de Estado, o desempenho do quadro administrativo sempre referido, em cada território, aos governantes que, sem diferença para qualquer das soberanias europeias imperiais da época, não correspondiam ao modelo do constitucionalismo liberal, porque o seu tipo normativo era herdeiro da concentração de poderes anterior às revoluções que impuseram a evolução democrática. A confusa metodologia usada durante a crise para escolher responsáveis pelos governos coloniais, e que teve como principal causa a dificuldade de reunir poderes militares e civis com a cautela de respeitar as graduações castrenses, o que reduzia severamente a liberdade de escolha, fez de algum modo esquecer que havia uma carreira formal, exigente e absorvente, à qual muito se deve, com erros e acertos, a construção das promessas de grandes países que são os antigos territórios portugueses, tudo feito na curta distância que vai da Conferência de Berlim de 1885 até à retirada final. Talvez se tenha debilitado, nos últimos 20 anos, o unilateralismo crítico afadigado no inventário dos erros, para dar oportunidade ao conhecimento dos esforços do quadro responsável pela administração, dos serviços técnicos devotados ao bem comum dos povos, da luta profissional contra as resistências da natureza das coisas e das estruturas, do tempo útil e do tempo perdido.

A questão, de resposta obscura, é a de saber se vamos ter um projeto para assumir e manter uma função no mundo, no exercício da soberania de serviço exigida pelos novos tempos, ou se o mundo nos vai intimar um projeto, sabendo que a única coisa que humanamente pode fazer-se com o tempo é não o perder.

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