A publicação do livro de memórias de David Cameron estava inicialmente prevista para 2018, mas foi adiada até ao outono de 2019 para evitar chegar às livrarias e perturbar as negociações sobre o Brexit. Afinal, o prazo inicial para a saída do Reino Unido da União Europeia era a 29 de maio..O problema é que essa data também foi adiada, para 31 de outubro, e a editora Harper Collins, que terá assinado um contrato com o ex-primeiro-ministro britânico no valor de 800 mil libras em 2016, não estava disposta a adiar mais. O resultado: For the Record (que em português se pode traduzir por "para que fique registado") começa a ser vendido nesta quinta-feira, em plena embrulhada política, judicial e negocial do Brexit..Em plena época anual de congressos partidários no Reino Unido, a discussão centra-se na decisão do primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, de suspender o Parlamento. Na mais alta instância judicial do país, discute-se a validade de o chefe do governo tomar esta decisão que retirou dias de discussão aos deputados na contagem final para o Brexit. As audiências começaram nesta quarta-feira..Boris Johnson já prometeu que o Brexit se tornará realidade a 31 de outubro, aconteça o que acontecer, apesar de ter perdido uma votação na Câmara dos Deputados (uma de várias derrotas) sobre uma saída sem acordo. Este voto passou com o apoio de 21 deputados conservadores, que foram entretanto afastados do partido, deixando Boris Johnson sem maioria..Ao mesmo tempo, as negociações com a União Europeia não avançam. Apesar de vários líderes em Bruxelas e nos restantes 27 defenderem que ainda é possível um Brexit com acordo, sempre defendendo o chamado backstop (o mecanismo de salvaguarda para evitar uma fronteira física entre Irlanda do Norte e República da Irlanda que Johnson e os outros defensores do Brexit querem apagar), mostram-se cada vez mais céticos em relação a essa possibilidade..O principal negociador do lado europeu, Michel Barnier, acusou o Reino Unido de só "fingir negociar". Já o ainda presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, considerou nesta quarta-feira que o risco de um Brexit sem acordo era "palpável". Segundo o The Guardian , o primeiro-ministro ficou surpreendido ao perceber a quantidade de verificações que ainda seriam precisas na fronteira entre as duas Irlandas com o seu alegado plano alternativo, que passa por a Irlanda do Norte continuar alinhada com os padrões da UE em relação a alimentos agropecuários, o que eliminaria a necessidade de verificações sanitárias e fitossanitárias em produtos e animais que cruzam a ilha..No meio de tudo isto, a quebra de silêncio de Cameron, que convocou o referendo de 2016 e se demitiu quando o perdeu, não ajuda ao debate. Além das citações do livro (alguns excertos foram publicados neste domingo e na segunda-feira pelo The Times ), o ex-primeiro-ministro tem-se multiplicado em entrevistas para promover as suas memórias. E não poupa críticas a Boris Johnson. Ao mesmo tempo que diz não se arrepender de convocar o referendo, pede contudo desculpas pela divisão que o Brexit causou no país..Os lucros da venda do livro vão para várias associações de caridade, tendo Cameron gravado também a versão em audiolivro..Sobre Boris Johnson.No livro, Cameron alega que o atual primeiro-ministro só se juntou à campanha a favor do Brexit por interesse. "O político conservador que assumisse a liderança do lado do Brexit - carregado com imagens de patriotismo, independência e romance - iria tornar-se o querido do partido. Ele não queria arriscar permitir que outra pessoa com maior perfil - Michael Gove, em particular - ficasse com essa coroa", escreve Cameron.."Ao mesmo tempo, ele tinha a certeza de que o lado do Brexit iria perder. Por isso, apoiá-lo traria pouco risco à ideia de destruir o governo que queria liderar um dia. Seria uma aposta sem risco apostar nele próprio", acrescenta o ex-primeiro-ministro, contando como prometeu ao ex-mayorde Londres a pasta da Defesa após uma eventual vitória no referendo para o manter do lado do Remain..Segundo David Cameron, Johnson acreditava que poderia haver uma renegociação com a União Europeia seguida de um segundo referendo: "A conclusão que tiro é que ele arriscou um resultado em que não acreditava porque isso ajudaria a sua carreira política.".Sobre Michael Gove.Além de Boris Johnson, as críticas de David Cameron recaem sobre Michael Gove - seu amigo desde os tempos da Universidade de Oxford que era então ministro da Justiça e seria outro dos rostos da campanha do Brexit.."Michael tinha apoiado algo em que talvez acreditasse, mas no processo tinha cortado relações com os amigos e apoiantes, ao mesmo tempo que assumia posições que eram completamente contra a sua identidade política", escreve o ex-primeiro-ministro, acrescentando que houve uma qualidade que saltou à vista no caso de Gove: "Deslealdade. Deslealdade comigo - e, mais tarde, deslealdade para com o Boris.".Segundo Cameron, era Gove que não tinha problemas em "sujar as mãos", alegando, por exemplo, que a renegociação dos acordos com a União Europeia que o então primeiro-ministro tinha conseguido não era legalmente vinculativa. Cameron viu esses ataques como pessoais, alegando que a "ferocidade e mentira" o chocaram. Apelida Gove de "embaixador da era da pós-verdade"..O ex-primeiro-ministro fala ainda da luta pela sua sucessão e de como Gove passou a perna a Boris Johnson. Dias depois, Cameron diz que enviou uma mensagem para Johnson: "Devias ter ficado comigo, companheiro", escreveu, com o ex-mayor de Londres a responder que Gove era "um bocado maluco ou algo assim"..A amizade com Gove não recuperou e os dois não falam regularmente, contou numa entrevista ao The Times..Sobre Jeremy Corbyn e outros.Nos excertos divulgados antes de o livro ser publicado, o ex-primeiro-ministro também fala do Labour e do seu líder, Jeremy Corbyn, dizendo que ele estava "awol", uma abreviação militar que significa "ausente sem licença". O líder da oposição "fez uma série de discursos desligados sobre ficar [na União Europeia] e depois foi de férias. Talvez Corbyn quisesse que o Remain perdesse"..Em relação a Dominic Cummings, que trabalhou na campanha do Brexit com Johnson e é agora conselheiro especial do primeiro-ministro, diz que fazia parte de um "caldeirão de toxicidade", junto com o ex-líder do UKIP e atual líder do Partido do Brexit, Nigel Farage..Sobre a sua sucessora, Theresa May, Cameron disse que sempre a apoiou de forma privada, já que a considerava "um par de mãos seguro" e pensava que "podia ser uma boa líder". Escreve nas memórias: "Acreditava que a dureza que tinha visto [e sentido] a serviria bem em Bruxelas.".Sobre o referendo e a campanha."Um dos maiores erros de cálculo que cometi foi pensar que os eurocéticos moderados veriam, como eu, que ficar e lutar, com novas reformas acordadas, com todos os opt-out garantidos, com todas as vantagens em comércio e cooperação, era o caminho correto", escreve. "Talvez essa seja uma das maiores armadilhas em política: pensar que outros, especialmente aqueles que conheces bem, pensam como tu. Muitas vezes não pensam", acrescenta..No livro, Cameron admite ter cometido "alguns erros grandes" durante a campanha e alega que devia ter feito mais para falar sobre as verdadeiras conquistas da União Europeia. Admite que pensa "todos os dias" no que aconteceu, já que era o seu referendo e a sua campanha. Mas lembra que tinha de fazer o referendo porque o tema não ia desaparecer.."Se me pergunta se tenho arrependimentos? Sim. Se tenho pena do estado a que o país chegou? Sim", disse numa entrevista à ITV, na segunda-feira. "Sinto que tenho alguma responsabilidade? Sim. Era o meu referendo, a minha campanha, a minha decisão de tentar renegociar. E eu aceito todas essas coisas e as pessoas vão ter de decidir quanta culpa colocar em mim." E concluiu: "Não posso ser mais franco do que isto - aceito que aquela tentativa falhou." Admite que "algumas pessoas nunca me vão perdoar"..Noutra entrevista ao The Times, antes da publicação dos excertos, acrescentou: "Penso nisto todos os dias. Todos os dias penso nisto, no referendo e no facto de termos perdido e nas consequências e nas coisas que podia ter feito de forma diferente, e preocupo-me desesperadamente sobre o que vai acontecer a seguir. Acho que podemos chegar a uma situação em que saímos mas somos amigos, vizinhos e parceiros. Podemos chegar lá, mas adoraria acelerar para esse momento porque é uma memória dolorosa para o país e é doloroso de ver.".Diante das táticas do voto Leave, Cameron diz que se sentiu preso. "A paralisia tinha-me nas suas garras. Estava preso entre fazer campanha e ser um primeiro-ministro, e escolhi a última opção. Era uma guerra assimétrica.".Cameron conta ainda como todos estavam confiantes na vitória no dia do referendo e que tinha já preparado o discurso, que tinha uma "oferta aberta, compreensiva e generosa" ao país para ultrapassar o Brexit. Mas, à medida que a noite avançava, os dados começavam a apontar para a sua derrota e ele sabia que teria de se demitir. "Ficar seria simplesmente atrasar o aceitar de uma morte política que já tinha acontecido", explica, apesar de ter prometido que ficava mesmo em caso de derrota..Nas memórias conta como telefonou aos líderes europeus e ao presidente dos EUA, Barack Obama, e pediu desculpas por não ter conseguido manter o Reino Unido na União Europeia. "Tinha uma estratégia para manter o Reino Unido na União Europeia. Empreendi essa estratégia. Não resultou. Peço desculpa.".Depois de anunciar a demissão, numa declaração frente a Downing Street, Cameron foi ouvido a cantarolar uma canção alegre. Conta que o fez para se acalmar. "Quando andava de volta para a porta preta, pensei: 'Além de tudo o resto, esta porta não se vai abrir, pois não?' Murmurei a canção para me manter calmo, que foi inevitavelmente ouvida pelos microfones", escreveu. Tanto Cameron como a sua mulher, Samantha, voltaram a fumar após o stress do referendo..Nos últimos dias em Downing Street, a casa parecia um lugar sombrio. "O poder estava a diminuir como uma lâmpada fraca. Eu começava a sentir-me o equivalente político ao The Walking Dead [série de televisão com zombies].".Na entrevista com o The Times, ainda antes dos excertos do livro serem publicados, Cameron admitiu que talvez seja preciso um segundo referendo para acabar com o atual impasse, criticando a decisão de Johnson de suspender o Parlamento e afastar os deputados conservadores que votaram contra ele. "Não apoio nenhuma dessas ideias. Nem acho que um Brexit sem acordo seja uma boa ideia", acrescentou..Política para além do Brexit.A nível político, Cameron revela que um dos momentos de que mais se orgulha durante o tempo que esteve em Downing Street foi aprovar as uniões entre pessoas do mesmo sexo. E que foi a mulher, Samantha, que o convenceu. "Não me vou sentir menos casada se duas pessoas homossexuais querem casar-se", terá sido um dos argumentos..Ao mesmo tempo, o ex-primeiro-ministro disse à ITV que o seu erro foi não ter avançado com mais austeridade e mais rapidamente, alegando que os eleitores lhe tinham dado uma "janela de autorização" depois das eleições de 2010 para cortes mais radicais nos serviços públicos.."Foram decisões muito difíceis. A desigualdade baixou, o número de pessoas na pobreza também baixou. Acho que fizemos isto de uma forma que foi justa e razoável. Tirámos o Reino Unido da confusão total para uma situação em que éramos o país que crescia mais rapidamente do G7." Apesar de admitir que às vezes as decisões não foram as melhores, acrescenta que, no geral, "a estratégia resultou"..Família.Nos excertos do livro divulgados e nas entrevistas, Cameron fala também da família, nomeadamente da morte do seu filho Ivan, com 6 anos, em 2009. Sofria de uma forma rara de epilepsia e tinha múltiplas convulsões diárias.."Nada, absolutamente nada, pode preparar-nos para a realidade de perder o nosso filho querido desta forma. Foi como se o mundo tivesse parado de rodar", indicou..Também fala na juventude e de como fumava canábis quando estava no colégio interno, em Eton. Que foi apanhado, mas mentiu dizendo que só tinha fumado uma vez, evitando ser expulso mas sendo obrigado a ficar dentro da escola durante uma semana..Na Universidade de Oxford, Cameron disse lamentar fazer parte do Bullingdon Club, alegando que isso o "assombrou durante toda a sua vida política". Esse clube elitista, só para homens, é conhecido pelo comportamento violento, mas Cameron rejeita como exageradas as ideias de que destruíam restaurantes e ficavam alcoolizados até desmaiar..Anos antes, quando estava na escola preparatória, conheceu pela primeira vez a rainha Isabel II e disse uma asneira. Tudo porque fez uma leitura durante uma missa de Natal e esqueceu-se de dizer no fim "graças a Deus"..Sobre a sua mulher, conta que a viu pela primeira vez no sofá dos pais, aos 17 anos. Ela era amiga das irmãs e os amigos achavam que não tinham nada que ver um com o outro. "Eu era o ambicioso conservador. Ela era uma estudante de arte hippie (...) Eu estava a tentar ser convidado para festas políticas em Westminster. Ela estava a jogar snooker com o rapper Tricky na parte mais trendy de Bristol", escreve..Cameron conta que foi o ex-presidente francês Nicolas Sarkozy que permitiu que visse o seu pai antes de morrer. Ian Cameron sofreu um ataque cardíaco quando estava de férias no sul de França. A mãe do primeiro-ministro disse-lhe que estava tudo bem e que ele devia ficar em Londres, mas Sarkozy telefonou-lhe a dizer que tinha falado com os médicos e que podia ser fatal. Cameron ficou na casa de Sarkozy quando o pai morreu.