O secretário de Estado, jovem, um pouco tímido até, deveria ter-nos chamado a atenção pelo cantinho de boca maroto. Ele sorri não sorrindo, sinal de que se tem em boa conta, o que é, achava eu, um mínimo para um homem público. Era o Parlamento, era o debate na especialidade e a especialidade servida naquela manhã era a Caixa Geral de Depósitos. Bocejo. Então, Ricardo Mourinho Félix, governante de Finanças, tendo a oportunidade de florir o discurso, aproveitou..Disse: "O Sr. deputado Leitão Amaro, com a sua intervenção, revela uma de duas coisas: ou um profundo desconhecimento do funcionamento do RGIC ou uma disfuncionalidade cognitiva temporária..." E mais não disse o secretário de Estado porque rebentou uma bomba no hemiciclo. Daquelas à portuguesa - branda, pois - que se manifestam por mãos no ar, gritos, olhares furibundos, muito sangue na guelra e nenhum daquele com plasma, leucócitos e plaquetas que, entre nós, acontecem mais nos laboratórios de análises e nunca como em Bagdad no Parlamento e mercados..Pareceu-me que o secretário de Estado iria por ali fora com uma linguagem imagética rara no Parlamento. Rara neste, porque quando São Bento se chamou Palácio das Cortes e Camilo elegeu para lá o tribuno Calisto Elói de Silos de Benevides de Barbuda, as palavras eram preciosas. Ainda me lembro quando Calisto Elói, exaltado com um discurso anterior, se virou para o presidente da mesa e lançou: "Tomo a liberdade de perguntar a V. Exa. se as locuções repolhudas do ilustre colega são parlamentares; e se são, peço ainda a mercê de se me dizer onde se estudam aquelas farfalhices.".Infelizmente, não foi assim porque o secretário de Estado foi aparado da sua verve pelo escarcéu da oposição. E não só ele. Porque quando Mourinho Félix pretendia prosseguir, a câmara televisiva focou o visado, o deputado Leitão Amaro. E este, já depois das alegorias do adversário, olhava-o fixo, sem espanto nem ofensa pelo "profundo desconhecimento" nem pela "disfuncionalidade cognitiva", nem tão-pouco agradecido pela condição de "temporária" atribuída à sua putativa disfunção. Amaro olhava, queixo na mão esquerda e cotovelo apoiado na bancada, enquanto a mão direita volteava uma esferográfica..Para mim, o deputado ia exatamente plagiar-me a evocação de Calisto Elói, ia pedir a palavra e diria, mais coisa menos coisa: "Estou a desconfiar que a minha linguagem seca raspará nos ouvidos do Parlamento, que ainda agora se deleitou com a retórica florida do Sr. secretário de Estado." Mas também ele não pôde contribuir para o renascimento do florilégio parlamentar. O hemiciclo foi tomado pelo frenesim da bancada social-democrata, durante quatro minutos de guerra civil. Tirando o já aludido Leitão Amaro, que logo percebeu que a algazarra lhe tirava o protagonismo, e o líder parlamentar Luís Montenegro, imbuído da noção prudente de que só os líderes mas pouco embarcam em tumultos, os deputados laranja pareciam tomados por espasmos..E há eu! Peço imensa desculpa mas mesmo em momentos históricos como os vividos ontem, eu não me consigo desligar da minha humilde pessoa. Acontece que segui o discurso ainda antes de lhe conhecer o tsunami e, ao dar-me conta deste, tresli. Tenho de o dizer. Quando vi tanta indignação, dei por mim também a aquiescer: "De facto, não se diz aquilo..." Depois, quando vi a ex-ministra Teresa Morais, uma senhora tão serena, a chispar entre as cadeiras da bancada, olhar incendiado e dando pancadas no tampo, convenci-me da enormidade. O raio do secretário de Estado não podia dizer que o deputado não conhecia, e não conhecia profundamente, "o funcionamento do RGIC". Ora, Mourinho Félix disse-o. O vídeo já estava na net, passei-o e repassei-o, pus auscultadores e não há dúvidas, ouvi: "(...) do funcionamento do RGIC.".O pessoal das secções de economia e de política do meu jornal estava fascinado pelo banzé transmitido pelas televisões. Pus as mãos nos bolsos e fui pelos corredores até encontrar uma estagiária que escreve sobre assuntos mais ligeirinhos, sobre a Cristina Ferreira e assim. "Olha lá, sabes o que é o funcionamento do RGIC?", perguntei-lhe. Pouco interessada, ela disse não saber. Eu também não sabia, é certo, mas preocupa a displicência destas novas gerações que vão para o jornalismo e não se preocupam com o funcionamento do RGIC. Há anos, noutro 25 de Novembro, o RALIS, o RASP, o CICAP e outras siglas puseram o país dilacerado. No 25 de novembro de ontem, um RGIC quase repetia o país de pantanas e a jovem jornalista, indiferente....Voltei aos seniores. As televisões continuavam no hemiciclo e eu lancei devagarinho, a ver se compreendia pelo menos minha indignação: "Dizer aquilo do RGIC foi tramado..." Os meus colegas olharam para mim, pasmados: "Mas qual RGIC?!", disse um que frequenta os Passos Perdido. E prosseguiu ele: "Os protestos foram por causa da disfuncionalidade cognitiva temporária.".Fiz que sim com a cabeça, meti as mãos no bolsos e já ia pelo corredor, a ver se alguém me elucidava melhor. O jornalista da política foi amigo, pôs-me uma mão no ombro: "Como chamas àquilo de clicar com o polegar e os outros dedos, à procura duma palavra ou de um nome?", perguntou-me. "Ter uma branca", respondi. "Pois, isso no hemiciclo tinha pouco efeito", disse o meu colega..Fiquei na minha. Acho o RGIC, ou o funcionamento do meu RGIC, ou lá o que é, mais ofensivo.