A revolução digital que tomou conta do mundo físico não se restringe ao e-commerce, à digitalização da saúde ou às plataformas de streaming. O ciberativismo é o novo braço armado da intervenção social, capaz de arrastar multidões e de alterar o rumo político. Tudo isto a partir de um smartphone com ligação à Internet..Depois de quase dois anos a viver em contexto pandémico, a utilização das redes sociais aumentou, com o Instagram a ser considerada a terceira maior plataforma entre os portugueses. É nesta rede que 76,1% dos utilizadores diz ter criado um perfil, sendo também uma das opções que mais notoriedade ganhou entre os cibernautas: de acordo com a Marktest, o Instagram tem hoje 89,6% de notoriedade, quando há cinco anos não ultrapassava os 54,9%. Mas que impacto têm, afinal, estas redes que todos conhecem?.Se é verdade que estes fóruns sociais em versão digital podem ser palco do pior que há na humanidade, promovendo o bullying, a divisão política e a proliferação de movimentos negacionistas, não é menos relevante falar no poder de transformação positiva que guardam em cada post.."As redes sociais são o que fazemos delas", garante Mafalda Fernandes, autora da página de Instagram @quotidianodeumanegra. "Se são as pessoas que estão nas redes sociais, então são elas quem pode transformar as redes numa coisa positiva ou negativa", continua. Atualmente no quinto ano da licenciatura em Psicologia, Mafalda olha para estas plataformas como um reflexo da sociedade, dos seus medos e frustrações. Aliás, foi por vontade de partilhar as suas próprias frustrações, sentidas diariamente na pele em forma de atitudes e comentários racistas, que a jovem de 24 anos criou o seu próprio espaço de intervenção social..Influenciada pela morte de George Floyd às mãos da polícia norte-americana e pelo movimento Black Lives Matter, Mafalda achava que "as pessoas não falavam muito sobre estes assuntos" e decidiu fazer algo para inverter a situação. "Algo que tenho notado é que à medida que vou falando mais sobre as minhas experiências e contando mais aquilo que é ser negro em Portugal, as pessoas vão ficando mais "engajadas" e com mais interesse em procurar soluções", explica ao DN. No seu cantinho no Instagram, a estudante de psicologia esclarece dúvidas, aborda questões culturais e, sobretudo, tenta marcar a diferença e promover o antirracismo. "Há muita gente que visita a página porque acredita que pode encontrar os argumentos de que necessita para combater as pessoas que têm um discurso racista", diz, orgulhosa pela conquista..As próximas paragens deste projeto iniciado de forma impulsiva, diz, passam por continuar a esclarecer as pessoas sobre questões ligadas ao racismo e à discriminação. "Um grande objetivo que tenho é unir a comunidade negra. Quero pô-las à vontade para falar sobre este tema, porque não são só as pessoas brancas que têm dificuldade em falar sobre racismo", garante. Para já, a missão é continuar a espalhar a mensagem e desejar que, progressivamente, o seu conteúdo chegue a mais pessoas e que faça a diferença, um post de cada vez..Catarina Matos também usa o Instagram, e não só, para contribuir para a causa da sustentabilidade ambiental e para a redução do consumo desenfreado. É, portanto, o anticlímax do estereótipo de influencer tal como o conhecemos. "Sempre tive alguma preocupação ambiental e questionava-me sobre a quantidade de plásticos que trazia para casa", começa por enquadrar a arquiteta de formação. "O boom deu-se quando fui para Londres, em 2015. Lá deparei-me com o apocalipse do descartável que nunca imaginei encontrar", recorda. Foi nesta altura que decidiu criar a página @mindthetrash, que usava para a partilha diária de pequenas alterações ao seu estilo de vida, às suas escolhas de consumo e também dicas de reaproveitamento. "Há cada vez mais pessoas preocupadas e a pesquisar sobre alternativas", aponta, comparando a realidade atual com o período em que começou o projeto, em 2017..Desde o seu regresso a Portugal, Catarina decidiu acrescentar complexidade à página e passar, com o apoio do sócio e ex-namorado, a vender produtos sustentáveis para preencher um vazio que encontrou no mercado português. "Não havia cá estas alternativas a que já estávamos habituados e por isso surgiu a ideia de criar a loja online, que teve logo muito interesse", conta. Desde essa altura, o projeto cresceu e hoje tem quase todo o tipo de produtos à venda, sempre com duas preocupações centrais: sustentáveis e provenientes de comércio justo. "Ainda temos clientes que dizem que os preços são altos, mas o que digo é que não podemos baixar muito mais porque não podemos prejudicar os nossos fornecedores", diz. Desde escovas de dentes a artigos de cosmética, passando por produtos para a casa, são muitas as opções disponíveis. Porém, Catarina Matos mantém o princípio fundamental de não incentivar o consumo desnecessário e publica, no seu site e no Instagram, vídeos e textos com dicas sobre reaproveitamento.."Muitas vezes, as pessoas dizem que este é um estilo de vida muito caro, mas eu acabo por poupar dinheiro porque compro menos e o que compro é mais duradouro", esclarece. Depois de ter engravidado, Catarina tem hoje muitos conselhos sobre como poupar em fraldas ou toalhitas. "Uma dica muito simples é pegar em lençóis ou toalhas velhas, cortar em pedacinhos e, em vez de comprar toalhitas para limpar o rabo do bebé, usar esses retalhos de tecido para fazer a limpeza. Depois é só colocar na máquina, deixar secar e já podem ser utilizados novamente", exemplifica. Potenciar a transição ambiental depende de todos, acredita, e pede, por isso, que os influenciadores digitais tenham cuidado com o que partilham. "Devemos focar-nos em dizer às pessoas que reutilizem aquilo que já têm", avisa..O ciberativismo social abarca todo e qualquer tema que, de uma forma ou de outra, afeta a sociedade como um todo. A sexualidade é um desses temas e aquele que a sexóloga Tânia Graça elegeu como sua bandeira no Instagram, onde, através da página com o seu nome, publica vídeos e posts que esclarecem dúvidas e desfazem mitos. "Continua a ser difícil falar de prazer pelo simples prazer, em oposição às relações sexuais com o estrito objetivo de procriar", analisa a psicóloga, cuja atividade clínica continua a desempenhar fora das redes sociais..Para Tânia, a dificuldade em falar abertamente de sexo, em particular entre as mulheres, encontra explicação nas questões culturais que definem o povo português. "Temos uma repressão feminina que é maior também por questões religiosas, com aquela ideia dos dois polos opostos nas mulheres: a Virgem Maria ou Maria Madalena. A mulher que é vista como santa virgem ou como promíscua e libertina", defende..O problema, diz, está nas dúvidas que todos temos, mas que, por vergonha, não esclarecemos. "Não falo da minha experiência pessoal, falo enquanto profissional com informação fidedigna, só que apresento a informação de uma forma descontraída e acessível a qualquer pessoa", sublinha. O resultado é a "libertação sexual" entre o seu público, com quem mantém proximidade por via de vídeos em formato consultório, onde procura responder a anseios, medos e dúvidas. "Quando as pessoas percebem que outros têm as mesmas questões, encontram libertação, especialmente as mulheres que falam comigo", aponta. Desde pessoas que compram o seu primeiro vibrador a quem tenha o seu primeiro orgasmo, as histórias de sucesso e, sobretudo, que refletem o impacto positivo do trabalho desenvolvido na página, são muitas..Sobre o efeito real, no mundo físico, daquilo que se passa no digital, Tânia Graça lembra temas difíceis que abordou no passado, como assédio sexual, violação ou relacionamentos abusivos, criando um espaço onde os seguidores se sentissem seguros para falar, pela primeira vez, de uma experiência ou para procurar ajuda. "O digital já não é virtual, é muito real", afirma. Um exemplo está na colaboração que a sexóloga teve na "criação de uma proposta de lei para a criminalização da partilha não consentida de nudes", ou seja, a divulgação pública de fotografias ou vídeos íntimos. O que importa, considera, é intervir e batalhar para que algo de negativo seja alterado. "Não são as redes que são o bicho-papão, o bicho-papão são as pessoas que podem criar coisas más por lá", realça, destacando o papel que movimentos nas redes sociais podem ter na transformação social..dnot@dn.pt