A possibilidade de reinfeção pelo novo coronavírus, que segundo notícias avançadas recentemente terá sido comprovada num doente em Hong Kong, deve merecer a maior prudência. Quem é o diz é António Sarmento, que dirige o serviço de infecciologia do Hospital de São João, no Porto. O médico sublinha que não há neste momento evidência científica que permita concluir com segurança que as pessoas infetadas pelo SARS-CoV-2 podem sofrer reinfeções poucos meses depois.."Na ciência as coisas só têm validade quando são publicadas sob a forma de artigo científico, disponível para a comunidade científica" (o que ainda não aconteceu neste caso), diz ao DN, sublinhando que "a esmagadora maioria dos artigos" publicados até agora sustentam que as pessoas infetadas uma vez não voltam a ser reinfetadas - "isto desde que começou a doença até agora, no prazo de cinco anos não sabemos"..Há uma semana foi notícia o primeiro caso, segundo os investigadores confirmado, de reinfeção pelo novo coronavírus - um homem de Hong Kong, de 33 anos, que teve covid-19 em abril e que voltou a testar novamente positivo após o regresso, já neste mês, de uma viagem a Espanha. Investigadores da Universidade de Hong Kong afirmaram ter estudado as sequências genéticas das estirpes do vírus contraídas em abril e em agosto e concluíram que são "claramente diferentes". Um dia depois, também a Bélgica e os Países Baixos vieram apontar dois casos de reinfeção..Mas António Sarmento defende que é preciso "dar tempo ao tempo" para perceber se é efetivamente assim. Com a experiência acumulada dos 2200 doentes com covid-19 que já passaram pelo Hospital de São João - em internamento e em ambulatório -, o médico infecciologista explica como, em muitos casos, os pacientes voltam a testar positivo.."Há critérios de cura que estão assentes mundialmente: um doente que há mais de três dias não tem febre, que teve uma melhoria franca dos sintomas respiratórios, que faz um teste e o teste é negativo, está curado. Isto no caso de ter sido tratado em casa. Se esse doente esteve internado no hospital não basta um teste negativo, têm de ser dois, espaçados 24 horas. O que acontece - e isto é frequentíssimo desde o início da doença - é que 10% a 20% destes doentes com critérios de cura, se repetirem os testes, têm um teste positivo", explica o médico infecciologista. E este positivo pode prolongar-se durante semanas..Como é que isto se explica? "Isto deu muita celeuma. Foi-se estudar, há uma série de estudos muito robustos sobre isso. E o que se pensa até agora é que isso não corresponde a reinfeção nenhuma." O que acontece é que o teste à covid-19 deteta o material genético do vírus, mas "não distingue um vírus viável e completo de um fragmento de vírus, e por isso é que aparece, muitas vezes, positivo".."Há vários estudos. Um deles, muito completo, foi feito pelas autoridades de saúde da Coreia do Sul, estudou cerca de 280 desses casos que repositivaram - que tinham critérios de cura, mas quando repetiram o teste voltou a ser positivo. Fizeram culturas em 108 desses doentes e as culturas deram todas negativo", diz António Sarmento, explicitando que a cultura "é a única coisa que nos pode dizer se o vírus está lá e se é viável, porque o teste que nós fazemos só nos diz que há um fragmento, que pode ser o vírus completo ou não"..Ora, "100% desses doentes que repositivaram tinham anticorpos neutralizantes positivos para o vírus e, se eles existem, é porque o vírus não está vivo"..O mesmo estudo foi depois analisar 740 contactos próximos dessas pessoas e verificou que havia três pessoas contagiadas, mas sem conseguir provar a ligação aos casos estudados, dado que aquelas três pessoas tinham tido contacto com uma comunidade religiosa onde houve um surto do novo coronavírus..O exemplo é apontado pelo médico infecciologista para afirmar que "estes casos, tanto quanto a ciência nos diz até hoje, não têm importância quer para o próprio doente quer para os seus contactos. Nada nos aponta que estas repositivações signifiquem alguma coisa". "A própria Direção-Geral da Saúde diz, nas suas normas, que depois dos testes a confirmarem a cura não se fazem mais porque a probabilidade de aparecer aleatoriamente um positivo é de 10% a 20%", sublinha..Quanto ao argumento de que esta era uma notícia esperada, na medida em que a reinfeção é comum noutros vírus respiratórios, António Sarmento defende que não se deve fazer esta analogia porque o facto de um vírus se comportar de determinada forma não significa que outro o faça também.."Neste momento a evidência forte é em favor da não reinfeção. E estas descrições até podem ser verdadeiras, mas são pontuais. Mesmo que surja um artigo científico válido a demonstrar que esses autores têm razão isso parece ser uma exceção", diz o médico. Ou seja, sem consequências numa pandemia que já afetou mais de 23 milhões de pessoas. "À luz do conhecimento que temos atualmente não me parece que seja plausível a reinfeção por sistema. Como é que vai ser daqui a um ano, daqui a três? Isso não sei, não sabemos quanto tempo é que a imunidade vai durar, se é permanente, se são cinco anos, se é um...", diz o médico do São João, lembrando que mesmo em doenças que dão imunidade permanente - caso do sarampo - pode haver uma reinfeção em determinadas circunstâncias.