Madrugada de 29 de outubro, 2018: "Brasil trágico." É verdade, já sei que irei escrever uma crónica com esse título daqui a uma semana e algumas horas. Sei, porque o mundo é assim e sei porque a crónica serei eu a escrevê-la. E, porque o mundo é mesmo assim e embora não seja eu a escrevê-los, sei também que vão aparecer vários comentários, publicados acerca dessa minha crónica, assim: "Bem feito, jornaleiros! Vocês diziam que Bolsonaro nunca ia ganhar... E agora? Aldrabões é o que vocês são todos.".Sei da inevitabilidade desses comentários porque nada é mais previsível do que um imbecil. Perdão, há ainda mais previsível: imbecis de repetição. Desde o verão de 2016, quando Donald Trump ganhou a candidatura republicana, primeiro estupefacto, depois cada vez mais irado, preparei-me para a vitória dele no outono e até a anunciei como provável. O que não me livrou, na sua vitória, de me classificaram de surpreendido. Classificaram-me e a milhares de jornalistas para quem essa vitória era provável. Não entenderam que a nossa escrita não era a negação de um facto que se anunciava. Era sobre a indecência que ele significava..No dia seguinte à eleição de Trump, David Remnick, prémio Pulitzer e diretor há 18 anos da prestigiada revista The New Yorker, publicou um texto a que chamou "Uma tragédia americana". Aí, ele prevenia contra as misérias a vir: "Um presidente cujo desprezo tem sido repetidamente demonstrado para com as mulheres e minorias, para com as liberdades civis e factos científicos, já para não falar da simples decência." E David Remnick rematou: "Trump é a vulgaridade sem limites." No momento da eleição, a sentença. O que se seguiu confirma a justeza dela..Jair Bolsonaro é mais brutal na sua vulgaridade. Se o norte-americano explicava por onde agarrar uma mulher, o brasileiro lamenta que a tortura não tenha passado para o limite seguinte e matado 30 mil presos políticos durante o regime militar. Bolsonaro comentou no presente o passado - por que não pôr a hipótese de o querer pôr em prática no futuro? Eles não escondem, eles dizem ao que vêm - essa, esta casta de políticos, é a novidade séc. XXI. Gente assim, até na política, sempre houve, mas escondiam-se. A novidade é que são populares e, em certos casos, até podem ser maioritários..Que afronta é essa de dizerem a quem os vê chegar e que alerta sobre o perigo que eles representam, enfim, dizerem de quem é lúcido, que se engana? Saiba-se: reconhecemos, agora e antes, o perigo de Trump, até o de ganhar eleições. Mais, até sabemos que os que levam com ciclones em cima continuam a apoiar o Trump, ele que nega a mudança climática e insiste em piorá-la. Saiba-se: reconhecemos, antes das eleições, o perigo de Bolsonaro ganhar no domingo. E depois disso, quando ele organizar milícias e desbastar a Amazónia, até sabemos que a caixa de Pandora aberta continuará com os seus adeptos..Por saberem desses líderes rascas e da capacidade de seduzirem tanta gente, mesmo os que não se deixaram enganar - aliás, sobretudo esses - devem deitar contas à vida. Do Brasil, que é tão nosso e tanto nos pode ensinar: o ovo da serpente não nasce do nada. Bolsonaro é filho da corrupção generalizada. Chocou enquanto o PT roubou. Este justifica-se insinuando que começou a roubar com boas intenções: a Constituição, propiciando a pulverização dos partidos, levou à compra de deputados para se poder governar... Pífia desculpa: os do PT que roubaram, roubaram por ganância. E a pior delas: a que se esconde com suposta perseguição política, como também por cá houve quem praticasse sem pudor (porque, além de roubar, prejudicou os seus)..O ovo da serpente não nasce do nada. Bolsonaro é filho de uma generalizada falência política. Direita e esquerda (mais uma vez com a desculpa da Constituição) praticam alianças espúrias. Os ministros leiloam-se entre os partidos, não se escolhem os melhores. E isso, governantes incapazes, até é mal menor comparado com outra prática comum: entraram na governança seitas venais, estúpidas (é lá com elas) e estupidificadoras (é connosco). Nós conhecemo-las, também por cá há, e preparam-se para entrar na política, se é que ainda não entraram. O PT governou com elas e elas, unânimes, são agora aliadas de Bolsonaro. O povo brasileiro não lhes pagará só o dízimo, arrisca-se a pagar a conta completa..A réstia de esperança está nas páginas de um livro cujo título é um programa: Viva o Povo Brasileiro. História de uma saga coletiva, a nascença de uma nação. João Ubaldo Ribeiro tem outro belo título: A Casa dos Budas Ditosos, outra saga, o amor ao amor. Leiam o Brasil quando caírem os resultados eleitorais de domingo próximo. Se não chegar, ponham Elis a cantar. Riam-se com A Porta dos Fundos. Recordem a coragem de Marielle..Não sabes onde te meteste, Jair Bolsonaro... Digo-o de mim para mim, com o coração apertado.