Mais de 4000 atuações, mais de cem discos gravados, e, feito inigualado na história da ópera, a 150.ª personagem aos 77 anos. Era assim que há um ano, em agosto de 2018, o The New York Times celebrava Plácido Domingo. Citando um ex-responsável da Metropolitan Opera de Nova Iorque, Joseph Volpe: "Se se olhar para a história dos cantores de ópera, ele tem um lugar próprio. Se alguma vez houve um gigante nesta indústria, ele é Plácido Domingo. Não tem rival.".Um gigante sem rival, o homem mais poderoso do mundo da ópera, um deus, alguém a quem era arriscado dizer não se se tivesse ambições na indústria: é exatamente assim que Plácido Domingo é descrito, por nove mulheres, no trabalho de investigação da Associated Press publicado nesta terça-feira e no qual oito cantoras e uma bailarina - todas exigindo anonimato à exceção de uma e todas, aparentemente, americanas ou tendo tido contacto com Domingo na América - descrevem a forma como, em datas que recuam ao final dos anos 1980 e prosseguem até ao final dos anos 1990, a lenda insistentemente as assediou, perseguiu e tocou de forma "inapropriada" e, em alguns casos, logrou em parte ou totalmente aquilo que é descrito como sendo os seus intentos: ter sexo..Uma das mulheres, uma cantora, conta que o então tenor (com a alteração da voz trazida pela idade passou a desempenhar papéis de barítono) a perseguiu sem descanso em 1998 quando ambos trabalhavam na Ópera de Los Angeles, e que acabou, apesar de ser casada, por aceder a acompanhar Domingo ao seu apartamento, onde este a despiu e houve "amassos" e beijos. "Estava totalmente intimidada e sentia que dizer-lhe não seria o mesmo que dizer não a Deus", conta. "Como se diz não a Deus?".Acabaria porém por fazê-lo, garante; ter-lhe-á dito para deixar de lhe ligar. O resultado, conclui, foi nunca mais ser contratada para a Ópera de LA depois de Domingo assumir o cargo de diretor..Duas das mulheres entrevistadas admitem ter chegado a vias de facto com Domingo, atribuindo o que descrevem como "cedência" à insistência dele e ao deslumbramento que sentiam, assim como ao receio de serem prejudicadas na carreira; três acusam-no de as ter beijado na boca de surpresa e contra a vontade delas (incluindo nas instalações de teatros e óperas), e outra de lhe ter metido a mão saia acima..Várias reportam contactos físicos inapropriados: mãos nas coxas, na cintura, na anca, demasiada proximidade de corpo e rosto, beijos "a caminho da boca", assim como entradas nos camarins sem aviso, telefonemas e propostas (de jantar, de sair, de estarem sós) repetidos, convites para ir a quartos de hotel e apartamentos para "ouvir cantar", ou "ensaiar" que, quando aceites, acabavam com tentativas de contactos sexuais..Nenhuma, de acordo com os seus relatos, apresentou qualquer reclamação ou queixa; várias contaram o ocorrido e a sua exasperação, confusão e/ou receio a outras pessoas, incluindo maridos (algumas eram casadas), colegas e amigos. E sete disseram à agência que acham que as respetivas carreiras sofreram as consequências de terem repudiado os avanços do cantor..A AP confirmou as datas e a coincidência entre as mulheres e Domingo nas companhias que elas referiram e ouviu testemunhas que corroboram parte dos relatos. Encontrou também outras seis mulheres que garantiram que Domingo não teve com elas contactos físicos inapropriados mas dirigiu-lhes "abordagens sugestivas" que as fizeram sentir "desconfortáveis". Entre elas, uma cantora que contou que o tenor lhe propôs repetidamente saírem juntos depois de a contratar para atuar com ele numa série de concertos nos anos 1990.."Regras e preceitos do passado eram muito diferentes".Este comportamento de Domingo, certificam as mulheres entrevistadas pela AP, era "conhecido" e "comentado" naquele mundo, havendo mesmo "avisos" às mulheres mais jovens e atraentes para que não ficassem a sós, nem sequer num elevador, com o cantor espanhol, que à época era já também diretor artístico em várias companhias e que assim, além do poder do prestígio, tinha também o de contratar e despedir..O jornal espanhol El Mundo confirmou em parte estas alegações das mulheres ouvidas pela AP: "Fontes da cena musical nova-iorquina e que preferem manter o anonimato confirmam que tal comportamento de Domingo era "vox populi na maior cidade dos EUA". E cita: "Tentava apoiar jovens cantoras em início de carreira desde que acedessem ao que queria.".As mesmas fontes terão asseverado ao El Mundo que há intérpretes muito conhecidas entre as que foram assim "favorecidas". História muito diferente, diz o mesmo diário, se conta na mesma indústria em Espanha. "Pessoas que em várias qualidades trabalharam com ele ao longo do tempo sublinharam o seu carácter atento, sem peneiras e carinhoso, mas sem se impor em nenhum caso e sem sombra de represálias, muito menos por despeito.".Confrontado pela AP, Plácido Domingo enviou na segunda-feira uma resposta escrita à agência. Sem responder às perguntas que lhe foram feitas, Domingo, que é casado com a mesma mulher há 50 anos, diz que os relatos que lhe são referidos como provenientes de anónimas "são muito perturbadores mas inexatos." Afiança também: "É doloroso saber que posso ter perturbado e magoado alguém ou causado desconforto - não interessa há quanto tempo, e por melhores que fossem as minhas intenções. Acreditei que todas as minhas interações e relações eram gratas e consensuais. Quem me conhece ou trabalhou comigo sabe que não sou alguém que intencionalmente quisesse causar algum mal, ou ofender ou embaraçar alguém.".No entanto, prossegue o septuagenário, "reconheço que as regras e os preceitos pelos quais somos - e devemos ser - julgados hoje são muito diferentes dos que vigoravam no passado. Sou abençoado com uma carreira de mais de 50 anos na ópera e sempre me regi pelos mais altos padrões de comportamento"..Investigação privada e cancelamentos nos EUA.Até agora, não é conhecida qualquer intervenção ou ação das autoridades judiciárias americanas. Mas a Ópera de Los Angeles, que é dirigida pelo cantor desde 2003, anunciou a abertura de uma investigação interna, que deverá ser conduzida por uma equipa contratada para o efeito.."Plácido Domingo tem sido uma força criativa da Ópera e da cultura artística de Los Angeles há mais de três décadas", lê-se num comunicado da companhia, que tinha programadas atuações do cantor de 22 de fevereiro a 14 de março em Roberto Devereux, de Donizetti. "No entanto, estamos empenhados em fazer tudo o que nos for possível para criar e manter um ambiente profissional e relacional onde todos os nossos colaboradores e funcionários se sintam igualmente confortáveis, respeitados e valorizados.".A Ópera de São Francisco fez um comunicado semelhante e anunciou o cancelamento de um recital de Plácido Domingo a 6 de outubro: "Ainda que os incidentes reportados não ocorrido lugar na Ópera de São Francisco, não podemos receber este artista na nossa casa." A companhia certifica que quem tem bilhetes pode receber o dinheiro de volta ou trocá-los por entradas para outros espetáculos..Também a Orquestra de Filadélfia cancelou o convite que lhe tinha feito para a abertura da temporada em setembro. E a Ópera Metropolitana de Nova Iorque, que em 2018 despediu o seu diretor musical, James Levine, precisamente por alegações de condutas do tipo imputado a Domingo, disse em comunicado "levar muito a sério acusações de assédio sexual e abuso de poder", e aguardar pelas conclusões da investigação da sua congénere californiana para decidir se vai ou não manter as atuações do cantor, programadas de 25 de setembro a 1 de outubro em Macbeth, de Verdi, e de 6 a 16 de novembro em Madama Butterfly, de Puccini..Atitude diferente tem a responsável do Festival de Salzburgo, no qual Domingo prevê atuar a 25 e 31 de agosto na ópera Luisa Miller, de Verdi. Helga Rabl-Stadler, uma ex-jornalista e ex-política austríaca de 71 anos que desde 1995 dirige o festival, anunciou em comunicado que Domingo vai atuar como planeado e faz-lhe uma defesa de carácter. "Conheço-o há mais de 25 anos. Além da sua competência artística, sempre me impressionou a forma como trata os funcionários do festival. Conhece o nome de todos; seja o que for que façam, nunca se esquece de agradecer. Caso houvesse acusações do tipo das referidas no festival, tenho a certeza de que eu saberia."."In dubio pro reo".Na citada peça de agosto de 2018 do The New York Times, Rabl-Stadler tinha elogiado o aspeto físico e a capacidade de sedução do cantor para justificar o facto de ele ir desempenhar um papel de alguém muito mais novo: "É um homem tão bonito [handsome] que nunca se pensa na idade dele. É tão sedutor em palco." Agora, indigna-se com o que considera uma inversão do princípio de direito in dubio pro reo (na dúvida, decide-se a favor do réu), e portanto "objetivamente incorreto e humanamente irresponsável": "Assumir um julgamento definitivo neste momento e tomar decisões com base nele.".Também o ex-diretor geral da Ópera Metropolitana de Nova Iorque, Joseph Volpe, que esteve no cargo de 1990 a 2006 (ou seja, na altura em que várias das situações descritas pelas mulheres à AP se terão passado), atesta nunca ter ouvido falar de quaisquer alegações do tipo descrito contra Domingo. "Conheço-o desde que ele se estreou no Met em 1968 e nunca, jamais, houve uma queixa contra ele por assédio sexual. É um cavalheiro e sempre preocupado com as pessoas.".Patricia Wulf, a única das mulheres citadas pela AP que aceitou "dar a cara", dá uma versão peculiar do cavalheirismo e "carinho" do cantor. Atualmente com 61 anos, Patricia era uma meio-soprano de 40 quando em 1998 trabalhou com Domingo na Ópera de Washington, onde ele era diretor artístico.."Tens de ir para casa esta noite?" Esta era, conta, a pergunta que Domingo lhe sussurrava a cada final de atuação. "De cada vez que eu saía do palco, ele estava à minha espera e vinha direito a mim, chegando o corpo dele ao meu, pondo a cara dele em cima da minha, sussurrando: 'Patricia, tens de ir para casa esta noite?'".Ela primeiro ter-se-á rido, apesar de não achar graça nenhuma à situação, mas a partir de certa altura começou a responder "Sim, tenho de ir para casa", e afastava-se. Reconhece à AP, contendo as lágrimas, que "quando um homem tão poderoso - quase como Deus naquela indústria - se chega a nós assim, a primeira coisa que se pensa é: "Que é isto?" Mas a seguir, quando te afastas, pensas: "Acabei de dar cabo da minha carreira?" E isto foi todos os dias durante toda a produção.".Domingo também costumava aparecer-lhe à porta do camarote. Com tanta frequência que Patricia terá começado a espreitar para ver se ele estava lá, e se o via ficava à espera de que fosse embora. O marido admitiu à AP que estava ao corrente e que a partir de certa altura já nem tinha de perguntar se acontecera alguma coisa: "Bastava olhar para ela, percebia-se.".Um colega, que confirmou à AP ter falado com a cantora sobre o caso e costumar acompanhá-la ao carro porque tinha medo de ir sozinha, chegou a oferecer-se para testemunhar a favor de Patricia se ela se queixasse de Domingo, mas ela respondeu: "Não o vão despedir a ele, vão despedir-me a mim.".Passados 21 anos, os papéis parecem ter-se invertido: se antes diz ter-se calado por achar que ninguém daria crédito a uma queixa sua, agora é Domingo que parece não ter crédito, pelo menos nos EUA. É isso que as acusadoras querem, que deixe de poder trabalhar, que seja proscrito sem processo, já que não apresentaram, pelo menos até agora, uma queixa formal, seja junto das autoridades seja nas companhias onde trabalharam com o cantor?.Wulf disse à AP que resolveu enfim falar porque o segredo de polichinelo - o sobejamente conhecido mas nunca denunciado comportamento de Domingo junto de mulheres - durara tempo de mais. "Estou a dar a cara porque tenho esperança de que isso ajude outras mulheres a falar ou a ter a força necessária para dizer não.".O que acha que deve acontecer a Domingo, Wulf não diz, ou não lhe perguntaram. Outra soprano que trabalhou com a grande estrela em 2002 na Ópera de Nova Iorque e a quem, após várias certificações de que ia ajudá-la na carreira, o cantor deu um beijo na boca quando estavam os dois a conversar no camarim dela, tem uma ideia exata..Depois do beijo, Domingo ter-lhe-á perguntado: "Estás a perceber? Estás mesmo a perceber?" Percebo perfeitamente, terá ela respondido. E, daí em diante, garante, nunca mais o olhou nos olhos. "Para mim, foi a morte de um herói. Foi a morte de um sonho", comenta. "Ele tem uma alma quando canta, e essa alma está lá no meio deste abuso de poder. Não é que eu queira que ele seja castigado. Quero que ele tenha consciência, que tenha a oportunidade de perceber exatamente o tipo de dano - emocional, psicológico, profissional e por aí fora - pelo qual é responsável."