Dias de Glória

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O mundo é teu, já te explico as razões e os senões

Da Weasel

Bem-vinda sejas, Glória, a este planeta com 4,5 mil milhões de anos. A tua espécie existe há cerca de 200 mil, e ainda que estes números possam parecer avassaladores para alguém com apenas horas de vida, não te assustes com a dimensão do tempo e do espaço, ou sequer com o peso da informação daqueles que dizem que és um milagre da natureza, porque a verdade é que também és apenas mais uma. No mesmo dia nasceram milhares como tu, e todos são formados pela mesma matéria estelar de que são feitos os bichos e as galáxias. És única, mas és também todos aqueles que já foram únicos antes de ti. Tens o universo inteiro a cavalgar nas tuas células, fazes parte de tudo isto, mais um fiozinho na teia.

Podia dourar a pílula, falar-te apenas da panóplia de acessórios e roupas de princesa que terás ao teu dispor, dos inúmeros canais de desenhos animados ou de como rapar uma tijela de mousse de chocolate - sim, podes usar os dedos - te fará feliz como um cão a correr na praia. Mas, enquanto teu tio, sinto que o instinto de proteção se transforma em dever, e que tenho de falar-te da seriedade do mundo a que acabas de chegar, dizer-te que as coisas não andam bem - e quando é que andaram? -, que a nossa existência te parecerá absurda demasiadas vezes, e a nossa natureza ruim, a nossa ganância danosa.

Queria escrever-te como quem segura a bicicleta sem rodinhas e abre caminho a fim de que não esfoles os joelhos, tal como quero que as tuas desilusões sejam menos dolorosas do que as minhas, ou que estas palavras te possam servir em algum momento. Mas depois vejo-te a dormir - fazes biquinho, como a tua mãe - e o meu tom professoral implode, não sou capaz de considerações reveladoras sobre o teu futuro ou o meu passado, a colocação da minha voz é substituída por um uso abusivo de diminutivos, expressões faciais palermas, e, subitamente, tudo o que interessa é a obra-prima dos teus dedos, a batatinha que é o teu nariz, as tuas pernas pontapeando o ar.

Agora já não sou eu que quero alertar-te para o tamanho do cosmos ou as limitações dos homens. És tu que me assombras. Não falas, nem sequer sei a cor dos teus olhos, ainda por definir, não vais sugerir--me um bom filme, nunca fomos de férias juntos, duvido que saibas alguma anedota de jeito e, no entanto, esmagas a velocidade palavrosa do meu cérebro, calas-me, o teu corpo miniatura tão poderoso que erradica, por instantes, todo o lixo do mundo - porque há mais divindade e esperança na curva do teu calcanhar do que em todos os terços que rodam nas mãos de quem reza neste instante. E os aparelhos eletrónicos deixam de transbordar informação, não há distrações, notícias, o ruído do movimento de rotação do planeta emu- dece. Perco toda a perspetiva porque contradizes, sem dizer nada, aquilo em que acredito: agora, nos meus braços, não és apenas um fio da teia, mas o centro do universo. As tuas bochechas e os sonzinhos que fazes enquanto dormes dão esperança aos cínicos e aos cansados. Trazes algo de primordial: o recomeço, a viagem que se inicia, o fascínio quando vires uma girafa ou um avião pela primeira vez, a descoberta da palavra certa, fazer rir os outros, tardes no mar até os lábios ficarem roxos, festas de aniversário com bar aberto de rebuçados, correr pela casa sem sapatos, acreditar no Pai Natal, gritar "Mãeeeeeeee-eeee", acentuando a última letra com a urgência de alguém pendurado num precipício, sabendo que ela virá sempre que precisares.

Talvez o teu poder imediato seja a promessa que trazes contigo, não apenas de uma vida, mas de uma vida que começa do nada, tão rasa como empenhada em conhecer tudo a partir do zero - do gatinhar ao sarcasmo, dos abraços aos piercings no nariz, do biberão ao Bloody Mary. Há quem acredite que as crianças são uma forma de imortalidade, a disseminação de feições e das memórias através do tempo. Há quem considere que as crianças são a tirania do gene egoísta a preservar a espécie. Há até quem tenha filhos porque lhe parece a única coisa extraordinária numa vida desinteressante.

Mas o que me fascina mais em ti - tão consolada e bem-cheirosa e pequenina no meu colo - é que tens por diante a empolgação de todas as coisas inéditas, a frescura que fomos perdendo por causa da repetição e dos passos em falso, e que, a partir de agora, voltamos a encontrar em ti. Não é que queiramos viver para sempre, é antes a emoção de voltar ao princípio, como quem pergunta, no final da montanha-russa: "Vamos outra vez?"

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