A certa altura, o capitão desligou o motor e a pequena embarcação foi engolida pelo silêncio da noite. Diaby e os outros sete ou oito "passageiros" ouviram o experiente marujo, num sussurro, mencionar os remos que pendiam do barco insuflável. Teriam de vencer a correnteza com os músculos para não serem notados. A travessia era tramada. As histórias contavam sobre almas relegadas ao deserto ou ao mar. Fugir da guerra era enfrentar uma outra guerra, exigia coragem e medo em doses ainda maiores do que a imensidão do Sara e do Atlântico..Sentado na esplanada de um café no Oriente, o marfinense Abdou Eahamane Diaby recorda-se de um dia de agosto soalheiro e quente como aquele, em 2007, quando a travessia terminou em outra estação de comboios, Santa Apolónia. A primeira noite em Lisboa foi igual à do bote, cheia de incertezas, as estrelas como teto. Enquanto tentava dormir, ao relento, à porta de Santa Apolónia, Diaby fechou os olhos e voltou a ouvir a voz sem rosto do capitão, a murmurar baixinho, como numa oração, "remem, remem".."Como o capitão sabia para onde ir?", perguntei.."Era árabe. Inventaram a astronomia", responde, abrindo um sorriso..Assim como o capitão sem rosto, o pai de Diaby também sabia ler os caminhos do céu. Guia espiritual em Bouaké, na Costa do Marfim, fez da casa da família também escola corânica e mesquita. Foi com o pai que Diaby absorveu as palavras do Alcorão. Literalmente. Das cascas da mangueira extraía a tinta usada para escrever os versos com uma caneta de bambu sobre uma superfície em madeira. "Em seguida, as palavras eram lavadas com água e, depois, bebíamo-las", lembra..O pai de Diaby era um homem influente, amigo dos poderosos, sinónimo de segurança e prestígio para a família. Com a eclosão da guerra civil, em 2002, porém, o cenário mudou: ser amigo dos poderosos significava ser inimigo de muitos. Bouaké virou a sede dos rebeldes. Os bombardeios aéreos começaram. Em 2005, o ultimato: quem desejasse viver deveria partir. E Diaby desejava viver. Partiu..Em dois anos, cortou África. Gana, Togo, Benim, Burkina Faso, Mali, Mauritânia, Argélia e Marrocos. Durante a diáspora, aos poucos teve notícias da família, dos irmãos, do pai e da mãe, assim como ele, espalhados pelo continente. Só um irmão ficou em Bouaké e pegou em armas pelo lado dos rebeldes. "Enlouqueceu", conta, girando as mãos ao redor da orelha, no gesto clássico. "Não era militar, mas engenheiro informático. Não estava preparado para o campo de batalha.".Diaby tem 38 anos, mas sente-se com bem mais. "Pelo que passei, sou um velho", diz, sacando os óculos de sol, mirando-me com um olhar fatigado. "No meu país, dizem que um ancião que viveu 100 anos na mesma aldeia tem a mesma idade de uma criança de 10 que viveu em cem aldeias", completa. Os últimos 13 anos deste "ancião" foram em Lisboa, escolhida ao acaso. A incerteza era parte de uma travessia que teve uma origem, mas nunca um destino..Em Marrocos, Diaby, graduado em Economia, pretendia fazer um mestrado, dar continuidade à vida interrompida pela guerra. A expectativa não coincidiu com a realidade. Sem visto, clandestino, encontrou abrigo na comunidade marfinense em Casablanca, onde, como no filme, o pensamento era um só: sair de lá. Aos poucos, foi apresentado aos meandros da estrutura que lucra com os conflitos em África. Entre falsificadores de carimbos usados por falsificadores de vistos, ouviu falar da travessia. "A Europa nunca esteve em meus planos, ainda mais naquelas circunstâncias. Mas a guerra tem os seus desígnios", diz o ancião de 38 anos..Um dia, o telefone tocou. "É amanhã. Vão passar para te pegar", disse a voz do outro lado do auscultador. Na noite seguinte, a carrinha estacionou à sua porta. Entrou, sem fazer perguntas. Havia outros sete ou oito no veículo. Viajaram abaixados, cerca de quatro horas, até um ponto ermo do litoral marroquino. Pouco tempo depois, ouviram o motor do barco, seguido da voz do capitão sem rosto, ordenando que entrassem. Na manhã seguinte, desembarcaram numa praia deserta, em Espanha. Outra carrinha surgiu. Outras horas agachados, até uma quinta no meio do nada..Diaby não sabia para onde ir. Ouviu quatro dos "passageiros" que remaram ao seu lado, senegaleses, falarem em Portugal. "Tinham parentes no Porto", conta. Decidiu acompanhá-los. O transporte foi cumprido em estradas clandestinas, de Espanha até Santa Apolónia, de onde partiria o comboio para Campanhã. Diaby, porém, não tinha dinheiro para o bilhete. Lisboa era, portanto, do seu destino..Aquela noite em Santa Apolónia foi a única sem um teto. Orientado por um angolano que conhecera no Martim Moniz, solicitou o estatuto de refugiado. Passou a viver no Centro de Acolhimento (CAF), na Bobadela, em Loures. "Aprendi muito sobre a crueldade. Ouvi crianças afegãs relatarem abusos e colombianos torturados pela FARC. Vivemos num mundo terrível", lamenta. No CAF, fez finalmente o seu mestrado, não em Economia mas em ativismo..Diaby já não vive no CAF, embora volte sempre ao local. Na tentativa de fazer do mundo um sítio menos terrível, envolveu-se em projetos para a causa dos refugiados, como o Destino: Imigração, financiado pelo Fundo para Asilo, a Migração e a Integração (FAMI), que tem promovido ações de empregabilidade e tentado fazer as empresas perceberem os refugiados no país. Um grupo, segundo ele, invisível também para as autoridades portuguesas.."Não raro, um diretor do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras nunca falou com um refugiado. Como podem decidir o futuro de um ser humano sem ouvir o que ele tem a dizer?", questiona. "Até agora, os milhões de euros dos fundos europeus só geram empregos a milhares de portugueses, psicólogos, assistentes sociais, secretárias, seguranças, burocratas, mas nenhum ao refugiado. No papel, há uma estrutura de apoio em Portugal, o problema é que ela trava na burocracia e na falta de respeito", critica..Mas nem tudo são críticas. Da cidade escolhida ao acaso, Diaby elogia o clima, a segurança e a gastronomia, essa também pela fartura, o que lhe faz lembrar a mãe, a cozinhar o suficiente para a família e para quem batesse à porta faminto. O telefone subitamente toca, alguém em busca de informação, de ajuda. "A vida é dura", diz, ao despedir-se. "Mas não se pode desistir, nunca", completa, como se ainda ouvisse a voz sem rosto do capitão, no sussurro em tom de prece, "remem, remem"..* Escritor, jornalista e lisboeta vindo de fora