Dia de irreflexão

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Foi a primeira vez, em meses, que programou o despertador. E foi também a primeira vez, desde que a mulher e o cão tinham morrido, que a casa não se pôs logo a murchar ao raiar do dia.

"É hoje, Antunes", disse para o espelho, após esbofetear as bochechas com after-shave, os longos pelos da barba entupindo o ralo, a tesoura já não uma possibilidade suicida. "É hoje, Antunes", disse novamente com a melena alinhada pelo pente que guardou no bolso das calças, não fosse a ventania estragar-lhe o visual e aparecesse no encontro com a guarda em baixo. Dizia: "É hoje, Antunes", e lembrava-se do primeiro ano de faculdade, dos camaradas que lhe sopraram o golpe ao ouvido. "É hoje, Antunes, põe-te a ouvir a rádio, não durmas", os mesmos colegas que, nos meses seguintes, foram evangelizar camponeses e escrever nas paredes da cidade libertada: "Abaixo os telhados, a chuva é do povo."

No quarto, tirou o seu único fato do armário - o mesmo que levara ao funeral -, mas nem a lembrança da mulher desativou o impulso que Antunes sentia crescer em si desde que, havia uma semana, se encontrara com Rodrigues, um antigo camarada.

Quando a mulher estava viva, Antunes pedia que ela se sentasse na cama enquanto ele se vestia - ou na retrete, enquanto ele tomava um duche -, justificando que era assim, com ela como audiência, que melhor organizava o pensamento. Abotoando o casaco, Antunes falou com a mulher. "Já te devia ter dito antes, mas, quando fui a Lisboa, encontrei o Rodrigues." Não era a primeira vez que falava com ela depois de morta ("Olívia, o comando da TV?", "Olívia, os meus óculos?", "Olívia, porque não voltas da rua?")

Na viuvez, Antunes percebera quanto amor tinha havido nos hábitos e na repetição, e que os gestos aparentemente mecânicos eram, afinal, aquilo que o amor tinha de mais épico. Não o amor dos livros e dos filmes, mas aquilo que lhe faltava agora, algo tão essencial que, sempre que o Antunes olhava para a porta, esperando ouvir as patas do cão e a fechadura, era capaz de acreditar que a Olívia entraria naquela sala e voltaria a sacudir-se, sobre o tapete dizendo: "Ainda bem que me avisaste para levar o guarda-chuva."

Antunes entrou na cozinha. Deitou fora a comida da tigela do cão e voltou a enchê-la. Fez o mesmo com a água. Falou com Olívia. "Sabes que eu e o Rodrigues... Bem, tivemos aquele desentendimento ideológico, mas ele veio falar comigo depois deste tempo todo, convidou-me para almoçar, já sabes, tenho dificuldade em dizer que não."

Antunes denunciava o mesmo timbre de voz, inadvertido, que lhe tomava a garganta sempre que escondia alguma coisa da mulher. "Não é nada de mais, Olívia, ele gaba-se um bocado, fala-me dos seus tempos no governo, esfrega-me o Rolex na cara e eu fico com umas histórias para contar." Antunes saiu de casa apressado, como fazia sempre que ia ao Bingo em modo furtivo ou se pisgava para cravar um cigarro na loja dos chineses.

Antunes e Rodrigues não se falavam há 40 anos. Antunes largara o partido e a faculdade no ano seguinte à revolução, casara-se, começara a trabalhar, reformara-se. Rodrigues mudara de partido meses após a revolução, chegara a ministro, reformara-se, mas ainda aparecia na TV e em muitos conselhos de administração de empresas. Eram amigos desde crianças, tinham entrado juntos para Direito, mas, certo dia, Antunes escolhera a vida e Rodrigues a política. Um dia em concreto.

E agora lá estavam os dois, frente a frente, num restaurante com vista para o rio e toalhas de pano bem engomadas, o Rodrigues a preencher todos os silêncios com a sua biografia e a casa de praia e a foto com o Reagan. Antunes, por sua vez, quase nem falou. Comeu e bebeu com regalo, esperando o momento certo para deixar de ser o tipo decente que quisera ser. Que, pelo menos, tentara ser. Estava em paz, até podia bater a bota - "Olívia, fizeste-me a mala?" - e, quando já iam a meio do digestivo, Rodrigues, por fim, estendeu-lhe o tapete: "Tivemos a nossas diferenças ideológicas, mas..."

Antunes deu uma gargalha que sugou toda a bazófia do ex-ministro. Acabou o conhaque de um só gole. Devolveu o charuto que lhe fora oferecido. "Isso é o que tu disseste a toda a gente na altura. É o que andámos a dizer durante quarenta anos. Mas a verdade, camarada, é que te pus os palitos. Naquele dia foste para a assembleia geral de estudantes e eu... Bem, eu acabei a casar com ela." Rodrigues simulou uma expressão de ultraje. Antunes voltou a rir, levantou-se. "E agora vou ter com a minha mulher. Isso mesmo, a minha mulher." E saiu porta fora, às gargalhadas, como se tivesse derrubado um regime, correndo para ir contar à Olívia que os antidepressivos estavam finalmente a fazer efeito.

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