Dez desafios para o novo líder da ONU
1 - Conflito na Ucrânia e atitude beligerante da Rússia
Em 2014, a Crimeia ucraniana foi anexada pela Rússia e o presidente Vladimir Putin tem apoiado os separatistas no Leste da Ucrânia. O conflito é real, mas, para o general Loureiro dos Santos, António Guterres não terá grande margem de manobra neste capítulo. "Poderá fazer recomendações. É uma figura credível para ter voz e ser ouvido, mas tudo dependerá da vontade russa", explica o especialista em segurança. Existe também o risco não negligenciável de o regime russo continuar com uma atitude beligerante em relação à Europa. "Mais cedo ou mais tarde a Rússia irá também desencadear conflitos híbridos na zona do Báltico, mas também aí o secretário-geral da ONU terá dificuldade em desempenhar um papel positivo. Nessa questão, a resposta terá que passar por uma ação dissuasora por parte da NATO", acrescenta Loureiro dos Santos.
2 - Israel, a Palestina e o mundo árabe
"A única possibilidade de resolver o problema é regionalizá-lo, envolvendo o mundo árabe pragmático, liderado pelo Egito e pela Arábia Saudita", sublinha Henrique Cymerman, correspondente no Médio Oriente. Para o jornalista português, o grande desafio de António Guterres será conseguir chamar para as negociações de paz os países da região que também veem o islamismo radical como um problema e que começam a olhar para Israel como um aliado. "O paradigma bilateral está morto. É fundamental criar um Estado palestiniano, ao lado de Israel, com o apoio dos países muçulmanos moderados e pragmáticos", acrescenta Cymerman. De acordo com o que o repórter explica ao DN, outro desafio do novo secretário-geral da ONU será a luta contra o antissemitismo: "Em Israel esperam - e fala-se disso - que Guterres venha a nomear alguém que se ocupe dessa questão, porque é inegável que está a crescer em todo mundo".
3 - A interminável guerra civil na Síria
Desde 2011 que o mundo assiste a uma sangrenta guerra civil na Síria, com um complicado tabuleiro de alianças e oposições. "Será uma das questões mais marcantes durante os seus mandatos, até porque estou convencido de que o conflito não vai acabar tão cedo", acredita Barah Mikhail, especialista em questões do Médio Oriente e membro do think thank FRIDE, em Madrid. O professor de Ciência Política reconhece que o passado de Guterres como Alto Comissário da ONU para os Refugiados faz com que seja alguém sensível para as questões que envolvem populações em condições de vida difíceis e que por isso dedicará especial atenção à questão síria. Ainda assim, Mikhail não está otimista em relação ao sucesso do novo secretário-geral: "Estou certo de que tentará lutar para que a ONU tome posições fortes, mas não será fácil alterar o equilíbrio de poder nas Nações Unidas. EUA e Rússia podem bloquear qualquer tentativa de resolução".
4 - Acordo do Clima, biodiversidade e pobreza
A eleição de Guterres surge na semana em que o Parlamento Europeu ratificou o Acordo do Clima de Paris. "O acordo de Paris é um passo positivo, porque os países reconhecem a existência de um problema, mas quando começamos a escavar, verificamos que se calhar é quase uma mão cheia de nada, que as metas são pouco ambiciosas", disse ao DN o presidente da direção da Quercus. Para João Branco. enquanto secretário-geral da ONU, Guterres terá o desafio de garantir que o acordo não fique esquecido. "Uma coisa é o que os políticos dizem, que querem diminuir as emissões de carbono, e outra é o que fazem, que é continuar a explorar petróleo", indicou, dando o exemplo de Portugal, que apesar de ter ratificado o acordo, mantém os planos para explorar petróleo no Algarve e Peniche. João Branco defendeu ainda que Guterres "pode usar a sua influência política para dar visibilidade a grandes asneiras e atrocidades ambientais que se fazem no mundo" e ajudar "no combate à perda de biodiversidade". Tudo sem esquecer as questões da pobreza. "Existem zonas muito grandes do planeta a ser destruídas por causa da miséria, grandes metrópoles onde a falta de água e esgotos é um problema, onde por não haver combustível, se queima toda a vegetação no raio de quilómetros".
5 - Metade dos 21 milhões de refugiados em dez países
Se o desafio é refugiados, então o ex-alto-comissário das Nações Unidas para os Refugiados está bem preparado para o poder enfrentar. "Tem é que dar prioridade ao tema", indicou ao DN o diretor executivo da Amnistia Internacional Portugal, Pedro Neto, felicitando Guterres. "Pela sua extraordinária capacidade de liderança, está numa posição para exigir aos países que partilhem a responsabilidade no acolhimento aos refugiados e providenciar rotas seguras para que possam sair dos países onde se encontram". Falando nos 21 milhões de refugiados que existem em todo o mundo, Neto lembra que "apenas dez dos mais de 190 países da ONU recebem mais de 50% dos refugiados". E não são eles os que têm capacidade para os receber, alega, "simplesmente estão ao lado dos países onde estão a ocorrer as grandes crises internacionais", defendendo que se os países mais ricos fizerem a sua parte, "poderá ser fácil resolver este problema". Além dos refugiados, o diretor da Amnistia Internacional Portugal defende também que Guterres tem nas mãos o desafio de "dar mais peso à sociedade civil para que os direitos humanos se tornem mais relevantes" e "fortalecer a ONU enquanto organização" para garantir o mesmo.
6 - Manter imparcialidade e gerir antagonismos
Uma das maiores dificuldades para António Guterres será manter-se numa posição de equilíbrio e gerir os antagonismos entre as principais potências. "Esse foi o grande problema da ONU nos anos 90. Boutros-Ghali tentou desenvolver as suas próprias visões, criticou os EUA e pagou o preço ao perder o apoio que tinha. Quando olhamos para os secretários-gerais que se seguiram, Kofi Annan e Ban Ki-moon, percebemos que alinharam sempre com as grandes potências", resume o professor de Ciência Política Barah Mikhail. O investigador universitário Bernardo Pires de Lima faz o mesmo diagnóstico: "Um dos desafios será transformar o secretariado-geral da ONU num órgão político, depois do esvaziamento político dos últimos dez anos, com Ban Ki-moon". A tarefa não é simples, mas o sucesso do mandato de Guterres passará em parte pela capacidade diplomática para gerir sensibilidades distintas no Conselho de Segurança. "Terá que tentar dirimir os interesses constantemente divergentes e antagónicos dos principais membros, sobretudo EUA e China, para que as resoluções sejam aplicáveis no terreno e não fiquem apenas no papel", acrescenta Pires de Lima.
7 - A igualdade e o "argumento mulher"
Tendo em conta o argumento que, desta vez, deveria ser uma mulher a ocupar o cargo, Guterres "tem que fazer esquecer essa discussão e ter muito cuidado com a questão da igualdade de oportunidades", frisa o major-general Raúl Cunha, lembrando que muitos olhos estarão postos nesse tema em particular. "Já no ACNUR ele valorizou uma paridade total e foi um promotor das mulheres para altos cargos. Durante as audições, Guterres disse que não poderia mudar a natureza humana mas que poderia mudar os termos do debate. E a verdade é que ganhou esse debate", constata Bernardo Pires de Lima, investigador universitário, acreditando que o ex-primeiro-ministro português vai ser consequente com o que apontou sobre o tema da igualdade e da paridade. Pires de Lima sugere que, para mostrar firmeza, Guterres deveria recuperar agora Irina Bokova, mantendo-a na UNESCO ou, até mesmo, fazendo-a subir noutra posição dentro da ONU.
8 - Conflitos congelados e o papel da ONU
Existem no mundo vários conflitos congelados e missões da ONU tão antigas que praticamente ninguém se lembra que elas estão lá. É o caso, por exemplo, do Sara Ocidental e de Chipre. "Esses conflitos têm muito que ver com grandes blocos, com as regiões onde estão localizados e, por isso, o papel do secretário-geral, seja ele quem for, está aí um pouco limitado. Já é só por si positivo que essas missões da ONU tenham interrompido um ciclo de violência nessas zonas. Guterres tem que dar um maior relevo à ONU porque a ONU é melhor organização para lidar com os conflitos. No Kosovo, por exemplo, a ONU devia ter tido um maior papel, em vez de ter havido um maior envolvimento de outras organizações, como, por exemplo, a UE", afirma o major-general Raúl Cunha que, entre 2005 e 2009, foi chefe dos oficiais de ligação militares da UNMIK e conselheiro militar do representante especial do secretário-geral da ONU no Kosovo.
9 - Pôr ordem na casa e reformar a organização
A imagem, o funcionamento interno e a configuração da ONU têm que ser reformados. Guterres "tem que combater a questão dos abusos sexuais por parte de capacetes azuis que foram detetados. Nesse campo tem que haver tolerância zero e não pode ser só no papel", diz o major-general Raúl Cunha, realçando a necessidade de "pôr ordem na casa, reformar a própria ONU, com regras mais transparentes a serem respeitadas, na admissão de pessoal, para que o protecionismo e a influência dos países mais poderosos não seja o que pesa mais na nomeação das pessoas para os cargos". A forma como Guterres foi eleito, refere, é um sinal de que as coisas podem ser feitas de forma diferente. Quanto à sempre falada reforma do Conselho de Segurança, para dar lugar a países como Índia e Brasil, Bernardo Pires de Lima diz que é um debate ilusório. "A tipologia do direito de veto é mais reformável do que a própria configuração deste órgão". O investigador universitário pensa que ao travar a candidata Kristalina Georgieva, promovida pela Alemanha, a Rússia enviou um sinal a Angela Merkel de que o tema da reforma do Conselho não está na ordem do dia. Pelo menos por agora.
10 - A desnuclearização e a volátil Coreia do Norte
"Para a maior parte da sociedade europeia, a questão das armas nucleares deixou de ser uma fonte de preocupação, mas a verdade é que a retórica nuclear está a reaparecer e será mais visível nas negociações internacionais", alerta Miguel Monjardino, do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica. Por isso, indica, Guterres "será chamado muito rapidamente" a pronunciar-se sobre o tema enquanto secretário-geral da ONU. O tema é particularmente premente na Ásia, por causa dos testes que a Coreia do Norte tem feito, mas na realidade nenhum país tem vindo a desnuclearizar-se. Pelo contrário, "estão a mobilizar o seu arsenal, a convencioná-lo", tendo em conta os exemplos do passado. "Será que a Rússia teria invadido a Ucrânia se o país não tivesse abdicado do seu arsenal nuclear nos anos 1990?", questiona Monjardino. Mesmo o acordo diplomático entre o Irão e os EUA é "ambíguo", diz Monjardino, já que Teerão "prescindiu de ter um arsenal nuclear real, mas mantém parte da infraestrutura e pode, a qualquer momento, se o entender, desenvolver a arma".