"A caligrafia na era dos computadores e dos smartphones está muito má", atira Manuel Oliveira, vice-presidente da Associação Nacional de Professores (ANP). "A técnica de escrever à mão seguindo um modelo estético e de beleza até artística está quase ausente da escrita nos dias de hoje e principalmente das nossas crianças e jovens. Estamos a escrever cada vez pior não porque não tenhamos uma 'boa' ou razoável caligrafia, mas porque simplesmente deixámos de usar a escrita manuscrita nesta era do digital e das redes sociais", afirma o professor do primeiro ciclo..Catarina Duarte, de 34 anos, corrobora: "A minha caligrafia está mais feia. Escrevo cada vez menos à mão e noto que há uma alteração da qualidade da minha letra. Os cadernos de há 15 anos não têm nada a ver com os atuais." Gestora financeira, autora do blogue (in)sensatez e formadora de cursos de escrita criativa, Catarina já não escreve tanto à mão como outrora, mas não consegue abandonar os cadernos e as agendas. "Gosto mesmo de escrever à mão. É mais prático. Mas quanto mais vamos perdendo o hábito, menos trabalhada é a letra. Sinto que escrevo rápido e de uma maneira mais corrida.".Tal como Catarina, a escritora Lúcia Vaz Pedro também chegou a usar cadernos de duas linhas para melhorar a forma como desenhava as letras, mas nota que, com o uso crescente das novas tecnologias, a sua letra manuscrita voltou a piorar. "Agora escrevo quase sempre no computador. Quando escrevo à mão, noto que a minha caligrafia tem vindo a deteriorar-se. Está cada vez pior.".Professora de Português há 28 anos, Lúcia Vaz Pedro considera que os adolescentes e jovens se preocupam cada vez menos com a letra. "Os alunos têm uma caligrafia muito feia, não têm cuidado. Alguns escrevem autênticos gatafunhos, enquanto muitos optam pela letra de imprensa para ser legível", afirma, ressalvando que há exceções. "Há alguns alunos que têm muito cuidado.".Embora nas escolas prevaleça a letra manuscrita, a escritora considera que o facto de as crianças "começarem a usar computadores e tablets" em idades muito precoces está a prejudicar a forma como escrevem à mão. "Antigamente, era tudo manuscrito. Agora, começam a usar a tecnologia demasiado cedo." Na vida adulta, a tendência também é para usar cada vez mais os equipamentos eletrónicos em detrimento do papel. "Os recados escreviam-se nos bilhetes, mas hoje enviam-se por telemóvel. Já não se escreve cartas. As pessoas estão a deixar de escrever à mão e a ficar cada vez mais com letra de médico, deitada, preguiçosa, sem cuidado.".Mas uma letra "feia" não está associada a menores capacidades cognitivas. Pelo contrário. De acordo com um estudo publicado recentemente no The American Journal of Psychology, citado pelo ABC, as pessoas com "letra feia" são mais inteligentes. Segundo os investigadores da Universidade de Yale, que analisaram jovens com diferentes quocientes de inteligência, os alunos que têm melhores notas do ensino básico à universidade tendem a tirar apontamentos e a escrever nos exames com uma letra mais descuidada..Quanto menos se pratica, pior, asseguram os professores consultados pelo DN. "No secundário, é um horror. Parece que à medida que crescemos se escreve cada vez pior, porque escrevemos menos." Enquanto professora, Lúcia Pedro tem como método escrever no quadro, obrigando os alunos a copiar os conteúdos para os cadernos. "Quando escrevem à mão, não só melhoram a caligrafia, porque treinam, como também memorizam as palavras, o que é benéfico para a ortografia", explica.."A escrita manuscrita com caneta e lápis não está para acabar".Há quem tenha uma visão menos negativa do estado atual da ortografia. Para a presidente da Associação de Professores de Português (APP), Filomena Viegas, não se pode falar numa tendência. "Muito antes do boom dos smartphones, muitos alunos tinham uma dificuldade enorme a desenhar as letras, o que está relacionado com a motricidade fina. Casualmente, vejo jovens com letras lindíssimas e outras que não se percebem nada bem", indica, destacando que "a escrita manuscrita com caneta e lápis não está para acabar"..Na opinião da representante, os smartphones até podem ser "uma mais-valia", porque os estudantes aprendem a letra manuscrita e praticam a de imprensa. "Além disso, os miúdos estudam, sublinham, tomam notas nos cadernos", frisa. Até existe, na sua opinião, muita gente a regressar "à caligrafia bonita". "Nas reuniões, por exemplo, cada vez mais as pessoas usam blocos para tirar notas. Ao mesmo tempo, se for preciso, mandam mensagens pelo telemóvel. Estamos a ser polivalentes", afirma a presidente da APP..Embora a profissão o obrigue a usar diariamente os teclados, Pedro Vasco Oliveira, jornalista, de 50 anos, não prescinde do papel e da caneta. "No meu trabalho diário escrevo à mão. Não é produção para fora, é para mim e, esmagadoramente, para verter para o computador", afirma. E é também dessa forma que escreve nos processos mais criativos. "Só escrevo as letras das músicas à mão. Não é que não possa escrever no bloco de notas do smartphone, mas é diferente. Parece que é mais orgânico". No final, gosta de "arrumar as coisas no computador"..Como escreve muito à mão, Pedro Vasco Oliveira considera que a sua letra manuscrita "melhorou bastante" ao longo dos anos. "Ganhei maturidade na forma de escrever. Na escola, somos ensinados a desenhar as letras de uma determinada maneira. Mas com o desenvolvimento da escrita vamos personalizando, criando o nosso lettering." Reconhece, no entanto, que "a maioria das pessoas escreve pior, porque escreve menos"..Contrariando aquela que muitos dizem ser a tendência, há quem tenha letras que impressionam pela sua beleza. É o caso de Prakriti Malla, uma menina nepalesa, de 14 anos, que se tornou uma celebridade na internet quando a sua letra começou a ser divulgada nas redes sociais. Vários cibernautas sugeriram, inclusive, que a Microsoft comprasse os direitos da sua letra e a disponibilizasse com o seu nome..Primeiro ciclo insiste na caligrafia.No primeiro ciclo, continua a existir uma grande preocupação com a caligrafia, considerada a "arte ou a técnica de escrever à mão segundo determinados modelos de estilo e de beleza". "Sabendo os professores que a escrita manuscrita tende e tenderá a ser cada vez menos utilizada, é importante a aposta na caligrafia para que, quando usada, seja verdadeiramente entendível e percetível por quem a lê", diz ao DN Manuel Oliveira. Segundo o docente, "a aposta na caligrafia é feita sobretudo nos 1.º e 2.º anos de escolaridade" e, apesar de a partir daí começar "a personalizar-se", os professores continuam a preocupar-se com o facto de a escrita ser bem legível"..Na Finlândia, por exemplo, as escolas começaram a abandonar a letra manuscrita em 2016, apostando na de imprensa. Uma medida que o vice-presidente da ANP não gostaria de ver aplicada em Portugal. "Cada pessoa tem a sua letra, a sua escrita manuscrita, e ela é única e intransmissível, é uma característica da sua própria personalidade. Enquanto professor do 1.º ciclo, através da letra manuscrita, eu identifico com alguma facilidade um trabalho de um aluno quando não identificado com o seu nome", justifica o professor..Escrever à mão estimula o cérebro.Vários estudos científicos têm vindo a apontar as vantagens da letra manuscrita para o desenvolvimento cerebral. "A escrita à mão é um processo mais elaborado, que envolve mais operações, pelo que põe mais cérebro em atividade. Isso é bom para a aprendizagem", salienta o neurologista Alexandre Castro Caldas, ressalvando, no entanto, que é difícil estabelecer comparações com a escrita nos teclados..O simples ato de escrever e ler "modifica radicalmente o cérebro todo, pois passamos a usá-lo de uma maneira completamente diferente". Para muitas pessoas, a melhor maneira de memorizar conteúdos é escrever à mão. "Podemos pensar que favorece a memorização. Ao ativarmos mais regiões do cérebro, há mais suporte à informação. Trata-se de uma memória por movimento, que é mais sólida, permitindo uma melhor reserva dos conteúdos", conclui o diretor do Instituto de Ciências da Saúde da Universidade Católica Portuguesa..Segundo Castro Caldas, esta é uma fase de transição. "Para já, é bom que as pessoas tenham várias competências em simultâneo. Provavelmente, acabaremos por passar para uma fase não escrita, em que se dita e a informação aparece escrita."