Lugar dos Dois Caminhos, 3 de Novembro.Hoje o Melville apanhou um grilo. Parece o início de uma crónica de alguém sem uma ideia para uma crónica, mas não é. O grilo veio da garagem, no meio da lenha, há umas duas semanas. Durante todo este tempo, não nos deixou dormir uma noite descansada. E, quando o Melville o apanhou, fizemos uma festa..O Melville era o maior interessado, aliás. Costuma dormir na sala, ao lado da lenha. Às vezes estávamos a ver televisão, os cães ressonando brandamente em volta, e lá vinha o grilo:.- Cri-cri..Havia um sarcasmo no modo como fazia aquele cri-cri. Porque, assim que dava por confirmado que pôr-se a cantar não o matava, enchia os pulmões e já ninguém o parava:.- Cri-cri-qui-qui..(E por aí fora, que isto já leva a sua conta de onomatopeias.).Era nesse momento que o Melville, qual cavaleiro em socorro da dama, salvo que a dama era ele próprio, se atirava ao cesto da lenha. Erguia uma orelha, fazia um ar furioso, virava a cama e atacava cada acha como se disso dependesse a soberania do reino..Nunca apanhou o grilo..Nem eu. Nestas duas semanas, devo ter-me levantado umas dez vezes. Entrava-me pelos ouvidos dentro, o diacho do grilo. Mas, assim que eu chegava à sala, calava a boca. O Melville, estático em frente ao cesto, com uma pata erguida como se estivesse a caçar lagartixas, rodava os olhos para mim:.- Tu não te mexas, dono, que é hoje que o apanhamos!.Nunca aconteceu. Revirámos a lenha não sei quantas vezes. A lenha acabou e trouxemos mais - o grilo continuou. Mudámos a forra do cesto, sacudimo-la no jardim - nada. Acabávamos de jantar, sentávamo--nos um instante no sofá, e lá vinha ele:.- Cri-cri..Ao fim de uns dias ouvimo-lo no quarto de hóspedes. Na noite seguinte, no meu escritório. Cheguei a jurar que o ouvi no meu próprio quarto, enfiado nalgum buraco do peitoril, mas talvez tenha sido um pesadelo..Todos os dias procurei o estupor do grilo. O Melville procurou-o comigo e sem mim, como um homem com uma missão. Até a Jasmim tentou apanhar o grilo, embora talvez tenha pensado que fossem bolachas..Até a Catarina o procurou..O Melville apanhou-o hoje. Surpreendeu-o dentro da despensa, cuja porta me esquecera de fechar. Percebi logo do que se tratava. Quando se tem cães há tempo suficiente, a linguagem corporal diz tudo. Atravessei a cozinha, numa celebração:.- Apanhaste-o, Melville!.O grilo estava ao canto da prateleira, encurralado contra uma caixa de cereais. Imaginei os seus olhinhos assustados. Desejei ter um microscópio apenas para gozar o pânico daqueles olhinhos..- Ah, malandro, que hoje vais conhecer o teu criador!.Mas o Melville já não teve coração. Fitou-o mais um instante, levantou o focinho para mim e foi-se enroscar na sua caminha..Daqui a pouco recomeça a cantoria..Lugar dos Dois Caminhos, 5 de Novembro.No fim, tive de ligar ao Careca. E ele:- Home", tá calado. Essa pequena vai sair daqui de barriga cheia..E eu:.- Tem calma, Zé. Ouve: faz-lhe um arrozinho de feijão..E ele:.- Home", tá calado..O facto é que ela estava cheia de fome. Íamos para a quinta refeição, em três dias consecutivos, e já levava não sei quantos papo-secos no estômago, sorvidos num instinto de sobrevivência..Nesta ilha, um vegano ainda é uma espécie de alienígena. O que em tempos me teria parecido razoável, sei-o bem. Hoje não parece..Quer dizer, eu passei a ter cães. Era preciso não possuir sensibilidade nenhuma para que a minha relação com os animais não tivesse mudado. E, ademais, já olhei uma jersey nos olhos. Já a vi olhar-me por entre as suas pestanas..Tenho conseguido ludibriar a memória do olhar dessa jersey. Mas não é despicienda a ideia de que, um dia, não consiga comer mais nada de origem animal também..Quanto aos restaurantes da minha terra, se havia um julgamento em relação à dita condição, não se notava. Nem sequer se podia acusar as pessoas de má vontade. Houve um em que o empregado respondeu:.- Não usamos legumes..Mas outros apresentaram-lhe pratos lindos. Uma pessoa olhava e apetecia tirar um retrato. Já ela via--os chegar e a sua fácies delicada ruía num torvelinho..Não havia nada para comer. Era como se ser vegano fosse não comer. Tudo se resumia a alface, tomate e uns talinhos de espargos - e, entretanto, nós à volta a comer alcatras..Da próxima vez que me vir na posição de anfitrião de um grupo de continentais, já sei: hei-de falar com cada chefe de cozinha. Deixar recado não chega..Desta vez, só me cheguei à frente na última refeição. Ainda por cima íamos ao Careca. Liguei..E ele:.- Home", tá calado. Sei muito bem o que vou fazer..E eu:.- Espera, Zé. Faz-lhe um arrozinho de feijão..E ele:.- Um arrozinho de feijão, um arrozinho de feijão... E legumes, essa pequena não quer?.- Ouve: toda a gente lhe serviu saladas. A moça deve estar a vomitar verdura..- Home", não te metas nisso. Achas que nunca veio aqui nenhum vegetariano?.- Vegano..- Tá calado..- Escuta. Faz-lhe um arrozinho de feijão, Zé. E não lhe metas nada de animal. Nem sequer um caldo de carne..- Eh, huóme, tás tolo ou o que é? Achas que se usa disso numa casa destas?.- Conto contigo, Zé..- Vai pá porra..Foi a única vez que a pequena comeu bem..Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico