Descentralização e ressabiamento?
A descentralização é daqueles temas consensuais. Não há ninguém que discorde - mesmo que tenham dúvidas sobre a forma e o conteúdo - de que o país beneficia de instituições e serviços espalhados por todo o território. Portugal é, no entanto, muito mais do que o eixo Lisboa-Porto. Até devo reconhecer que os autarcas deste país, em particular os do interior, são muito pacientes. Reclamam menos do que deviam com o poder central para que o investimento público e a descentralização se efetivem.
Mas o conceito de descentralização continua a ser muito sui generis neste cantinho à beira-mar plantado. Se calhar o problema é mesmo esse poder de atração do litoral e das duas grandes cidades em detrimento de todas as outras.
E se a deslocação de meios e de serviços tarda e fica atrás de outras prioridades do governo, há transferências que se fazem, incompreensivelmente, num piscar de olhos. Como esta agora do Infarmed para o Porto.
O processo de decisão foi tão rápido que dá ideia que o ministro da Saúde magicou na terça-feira uma solução miraculosa - descentralização da melhor, diz ele - para contentar o Porto pela perda da Agência Europeia de Medicamentos (EMA), que Bruxelas decidiu atribuir a Amesterdão depois de um processo de candidaturas e de votação.
Adalberto Campos Fernandes foi mais lesto, bastou uma conversa com António Costa e Rui Moreira para anunciar publicamente a transferência da autoridade nacional do medicamento, sem ter cuidado de preparar a instituição para uma mudança tão brusca. A grande questão é por que raio foi preciso contentar o Porto e tão rápido? Rui Moreira é assim tão poderoso que faz tremer o governo só de ficar frustrado por não ter conseguido a instalação da EMA? Haverá alguma explicação mais plausível?
O autarca do Porto está-se nas tintas para os 350 trabalhadores do Infarmed que foram apanhados de surpresa e para as consequências que essa transferência poderá ter nas suas vidas. Num post no Facebook, reagiu à contestação: "A adorar o ressabiamento de alguns. Assim vale a pena."
Mas não terá sido ao contrário? O ressabiamento que Moreira poderia destilar por ter perdido a EMA, depois de tantas expectativas, que levou o governo a criar um berbicacho numa instituição estável e com credibilidade para o contentar?
Os trabalhadores do Infarmed já responderam com uns esmagadores 97% de "nãos" à transferência para o Porto, cidade tão boa quanto Lisboa para trabalhar e morar, mas que fica só a 300 quilómetros do sítio do costume. Ressabiados, é isso, que não percebem a grandeza desta descentralização de pacotilha.