O título a azul na capa do DN de sábado passado era intrigante: "Os indianos que têm sucesso em Portugal são muitos." Lido por um português orgulhoso da sociedade de tolerância e não tribal que demorou muito a construir, o título aparentava-se gratificante. Grunhido por um daqueles vadios que passeiam a 10 de junho as botas de matar e o crânio vazio de cabelos e de ideias seria convocatória para mais um tropel provocatório nos centros comerciais do Martim Moniz - beneficiando de uma interpretação pisca-pisca da lei por parte da polícia e de quem a tutela: os centros comerciais são espaços privados quando visitados por internautas mais escuros - e absolutamente públicos se os invasores forem avantajados lusitos, balofos e toldados de álcool reles. .A "reportagem" foi motivada por jornais indianos referirem que Portugal iria ter um candidato a primeiro-ministro de origem indiana. Os indianos com êxito são muitos, diz o DN. Lemos o texto e fala-se de quatro, em especial - Yolanda, Camilo Lourenço, Alfredo Bruto da Costa e António Costa -, e destes só aparece um que é nascido no assim chamado subcontinente indiano, filho de pais também ali nascidos. Perante esta passagem direta de "muitos" a quatro e só se nomear, com má terminologia, um, não pôde deixar de me ocorrer uma das Lições do Tonecas, de um dos mais notáveis autores de diálogos da rádio portuguesa, José de Oliveira Cosme. Numa aula de Doutrina (os professores primários ensinavam todas as disciplinas, naquele tempo), o mestre pergunta a Tonecas: "Quais são os sete pecados mortais?" Resposta: "Os sete pecados mortais são cinco: Fé, Esperança e Caridade!" .Pedi explicações, respondeu-me o diretor, André Macedo: "O título da capa do DN de sábado está errado. "Os indianos que têm sucesso em Portugal são muitos" na verdade é uma história sobre quatro descendentes de indianos, como António Costa, candidato do PS nas próximas eleições legislativas, filho de Orlando da Costa. A razão de ser do artigo é, portanto, esta, não outra e o seu interesse jornalístico é evidente: António Costa. É verdade, também não se trata de uma reportagem, como erradamente é descrita de novo na primeira página do DN - as nossas desculpas aos leitores; ainda assim é um artigo de duas páginas bem construído e cuidadoso que toca no essencial: a integração destas pessoas de descendência ou origem indiana. Há muitas outras assim, várias na área empresarial, que podiam ter sido referidas, talvez o pudéssemos ter feito para que a história ficasse mais completa. No fundo é isto, nada mais.".Discordo: é muito mais.. O que é um indiano? Costumo insistir com os meus alunos de Ética e Deontologia que a única frase possível e rigorosa que completa "Os franceses são..." é "cidadãos de França". Nenhuma outra é exata..Ser indiano é nascer na Índia? E o que é a Índia? O Paquistão, o Bangladesh, o Sri Lanka e outros países são indianos? É uma raça? Ali existem todas as raças. São escuros? Encontrei-me, em Bombaim, com um indiano que era o Steve McQueen sem tirar nem pôr. Indianíssimo - há mais de dez gerações. Era parse, religião zoroastriana, expulsa da Pérsia há muitos séculos e cujos membros nunca se misturaram com outros indianos, sob pena de perder a condição de parse. Já agora: ele tinha a mesma origem de Freddy Mercury, falecido vocalista e alma dos Queen, parse de nome Farrokh Bulsara, circunstancialmente nascido em Zanzibar, para onde os pais emigraram, mas que de lá o reenviaram para Bombaim para estudar. Curioso: nunca me dei conta de qualquer reportagem sobre "o indiano Freddy Mercury". Mas são "não-brancos", como refere, citando, o texto do DN? Não será coisa muito cordial de se dizer a um brâmane culto que lembrará que Hitler, o "apurador de raças", foi roubar para seu símbolo à svastika hindu..Reparei que Fernanda Câncio trabalhou o seu texto com pinças, carregando-o de advertências. Teve, porém, a desdita de um apanhador de minhocas, de botas de borracha, no lodaçal dos estereótipos..Foram esquecidas muitas pessoas originárias ou com antepassados no subcontinente indiano, de outra extração religiosa que não a cristã, à exceção de Narana Coissoró, sobre cuja origem social um dos entrevistados disse à jornalista um disparate enorme. De muçulmanos falou-se de um moçambicano sunita e esqueceu-se que provavelmente a maior comunidade islâmica em Portugal é xiita: são os ismaelitas, com imensas pessoas com êxito por cá.. Mesmo quanto aos que chegaram à política, ficou esquecido, por exemplo, André Gonçalves Pereira, catedrático de Direito Internacional Público e ministro dos Negócios Estrangeiros do governo de Pinto Balsemão e tão ou mais "indiano" que António Costa: ambos nasceram em Lisboa, que é onde nascem os "indianos", como se sabe. Gonçalves Pereira é filho de goês e de francesa, tal e qual eram os avós paternos de António Costa, com a variante de a avó ser também moçambicana. Costa é filho de pai moçambicano (com o coração literário amarrado a Goa - e não à "Índia" - e isso faz uma grande diferença, especialmente para alguns portugueses de Goa) e de mãe do Seixal. Por isso, é... "indiano". Fica assim combinado. Não dava jeito dizer lisboeta, filho de seixalense, para referir o presidente da Câmara de Lisboa, pois não? Não teria - como dizer? - picante, não é verdade? .Ah mas os jornais indianos disseram... Pois. Lá como cá também se faz jornalismo de outiva. Como por cá se diz de um futebolista suíço tetraneto de portugueses - que é luso--suíço. .Alfredo Bruto da Costa, o único da lista que poderia caber no conceito de "indiano": nascido em Goa, filho, neto, bisneto e por aí fora de goeses. Mas, vejam lá a caturrice: acha que é apenas "português, com uma cultura diferente"..Com isso, deu um valente encontrão nas ideias feitas, nos preconceitos e nos estereótipos, inimigos do jornalismo, cuja missão é desarmá--los para bem servir a inteligência do público: os grunhos com botas de matar e comentários vomitivos que retoucem na pocilga dos seus ideais..Não é ser-se politicamente correto - e nisso não vejo nada de mal, é muito melhor do que ser político incorreto, que os há para aí às pazadas: é ser-se exato e rigoroso.