Depois de dois meses sem "ir ao serviço", vai ficar tudo na mesma?
Foi o pior dos tempos e foi o melhor dos tempos. Usar a linha de abertura de História de Duas Cidades, de Charles Dickens, para descrever os meses de Estado de Emergência da Covid é um disparate? De alguns pontos de vista pode não ser. Por exemplo o de uma nova experiência laboral - pelo menos para algumas pessoas e empresas que, devido à imposição legal destes meses, poderão ter descoberto que o teletrabalho, ou um híbrido entre o modo convencional e o trabalho à distância, é a modalidade que mais lhes convém.
Há até quem esteja a "adorar". É a palavra que Flávio, 41 anos, um analista de dados numa multinacional tecnológica que sonha poder continuar em teletrabalho e eventualmente mudar-se para o interior do país, usa para descrever a experiência. "Inicialmente estranhei, mas agora estou a adorar a gestão de tempo. Ao não ter que me deslocar para o escritório ganhei duas horas do dia para me dedicar a outras coisas para as quais nunca tinha tempo ou me sentia demasiado cansado, como ler, dar uma caminhada ou jogar um jogo de tabuleiro. Também tenho a sensação de que as reuniões por videoconferência acabam por ser mais produtivas, não temos tanto a sensação de estarmos sempre em reuniões presenciais que bem podiam ter sido um email: agora são mesmo um email ou despacham-se sucintamente em 20 minutos em vez de uma hora de redundâncias."
Encontra igualmente vantagens financeiras e dietéticas - "Controlo melhor o que como, sem ceder à tentação de ir com os colegas a um rodízio, restaurante ou a alguma pastelaria nos intervalos e tenho notado que sem estas tentações e sem ter que pagar combustível e estacionamento nas deslocações ao escritório, tenho poupado bastante dinheiro" - , acalentando o sonho de que a multinacional para a qual trabalha siga o exemplo da Teleperformance, do Twitter (que na semana passada anunciou que vai permitir a todos os seus trabalhadores continuar em teletrabalho, se quiserem) ou da Square, criando "a oportunidade ideal de nos mudarmos para o interior do país continuando a trabalhar por esta via". Mas teme que seja ainda uma utopia.
Desvantagens? Também houve algumas, mas ultrapassou-as. "Na primeira semana montei o escritório na sala e estava a ter algum problema em 'desligar' entre local de trabalho e o espaço do lar e lazer, como li num meme que um colega me enviou: não sabia se estava a trabalhar em casa ou a viver no escritório. Decidi remontar tudo na marquise do quarto que nunca era utilizada e mal termino o turno desligo o computador e desde então tenho visto só benefícios no teletrabalho." Está, conclui, "extremamente curioso em saber como nos convencem a regressar sem frustrações ao escritório open space depois de estarmos cientes de que podemos fazer o trabalho com a mesma qualidade e produtividade a partir de casa."
Joana, 32 anos, também gostava que a experiência obrigatória, iniciada a 12 de março, tivesse continuidade, mesmo se no seu caso em regime misto: ficando três dias em casa e indo dois ao escritório.
"Desempenho funções administrativas numa consultora nacional, sediada em Lisboa oriental, onde trabalho 30 horas por semana. Há muito poucos elementos do meu trabalho que não consiga desempenhar de casa e tenho todas as condições para o fazer. Fazê-lo permitiu-me uma melhoria considerável na minha qualidade de vida."
Desde logo, explica, porque poupa três horas por dia em transportes públicos. "Esse tempo passo-o agora a brincar com o meu filho, ou despachar tarefas quotidianas." Está a usar material dado pela empresa e caso permaneça no regime que gostaria pondera investir numa mesa e cadeira melhores e talvez numa impressora, mas não espera que seja a empresa a custeá-las porque "o investimento é largamente compensado com o que poupo ficando em casa (gasolina, passe, transportes, almoços fora, etc)." Também não espera receber um subsídio de isenção de horário: "Acho que depende bastante das funções de cada um. No meu caso tenho mantido o meu horário regular e isso tem sido respeitado pelos colegas e chefia."
O tempo e dinheiro poupados na eliminação das deslocações são citados por quase todos trabalhadores que falaram com o DN. Adílio, 56 anos, é funcionário público e está nesse grupo. Uma das grandes vantagens que encontra na situação, que há algum tempo desejava ("Não contacto com o público e as minhas funções são passíveis de serem realizadas à distância") é poupar as cerca de duas horas que levava no movimento pendular para o local de trabalho e de volta, a que corresponde a poupança em gasolina - usava carro próprio - e em refeições fora, que, comenta com um emoji (a conversa decorre por mail), muitas vezes lhe implicavam desarranjos intestinais. Mas aquilo que mais preza nesta mudança não tem a ver com ganhos financeiros. "Tenho mais tempo para mim e para os meus. E diminuo a pegada ecológica, porque é algo que sempre me preocupou."
Um entendimento no qual se encontra com o engenheiro informático André, de 33 anos, que vivendo na Bobadela e tendo Sete Rios como local de trabalho perdia também muito tempo nas deslocações, vendo na diminuição da pegada de carbono uma grande vantagem.
A empresa de André é das que mandou os trabalhadores para casa mais cedo - a 17 de fevereiro - e não parece ter pressa de os ter de volta: vai permitir que assim fiquem até setembro. André acha bem, já que não se importava de se manter assim para lá disso - "Acho que obrigando-me a manter uma rotina saudável conseguiria habituar-me perfeitamente ao teletrabalho sem perder (e provavelmente aumentar) produtividade, já que tenho menos distrações nesta situação" - mas considera que a sua análise está ligada ao facto de viver só. "Acho que não ter filhos em casa faz uma diferença grande na avaliação do teletrabalho."
Ainda assim, André também vê contras na modalidade. "Há perda de contacto social direto com os colegas de trabalho (apesar das muitas reuniões em Zoom que fazemos ao longo do dia), e existe o aumento dos gastos com eletricidade (a minha fatura quase que duplicou, o tarifário bi-horário não ajuda neste caso), assim como o perigo de aumento involuntário das horas de expediente visto que "estás sempre no teu local de trabalho". Tudo somado, porém, considera que esta é "uma boa oportunidade de fazer ver às empresas que não têm nada a perder ao permitir (nos casos em que isso é possível) o teletrabalho como regra e não como exceção."
Rodrigo Brazão, 45 anos, diretor criativo numa empresa de comunicação, alinha nessa visão: "Descobri que a equipa com quem trabalho poderia estar em teletrabalho eternamente e se pudesse optar não hesitaria por manter esta situação. Passo mais tempo com o meu filho, faço a minha gestão do tempo, posso estar a trabalhar onde quiser - vivo em Lisboa mas neste momento decidi agarrar nas minhas coisas e vir para Sagres -, visto-me como me apetece, poupo dinheiro com as refeições e transportes." Esse é, como já vimos, um dos pontos fortes do teletrabalho. Outro, diz Rodrigo, é o do aumento na produtividade."
Mas esse aumento de produtividade poderá ter a ver com aquilo que Rodrigo vê como contra desta situação - "Acabo por não ter horário e estar sempre disponível, por vezes sinto que não há diferença entre o fim de semana e o dia de trabalho." Precisamente por isso acha que, a manter-se o regime, deve haver alterações contratuais. "Deveria contemplar-se uma maior flexibilidade nos horários, os recursos humanos deveriam fazer um acompanhamento mais próximo no sentido de perceberem o impacto psicológico e familiar e como estes podem afetar de forma negativa o colaborador. Deveria também existir um subsídio ou o pagamento das telecomunicações, e eventualmente aumentar o período de férias para compensar uma maior disponibilidade."
Nesse sentido - o de que é preciso, num quadro de teletrabalho, assegurar que os trabalhadores têm todas as condições e não ficam a perder em nada - vai a opinião de António Pedro Martins, diretor de marketing na SBM, que explica ser um cluster para a Península Ibérica da multinacional SBM com sede em França.
Sediado em Espanha, onde vive há 15 anos (tem 40), António está em teletrabalho desde 12 de março, dois dias antes de o governo espanhol ter imposto o lockdown e um dia antes de começar a ter sintomas de Covid, para o qual testou positivo, o que tornou as duas primeiras semanas de trabalho remoto muito penosas. A sua experiência inicial não foi portanto nada boa, mas conseguiu a partir daí adaptar-se e perceber que havia muitas vantagens na nova fórmula, nomeadamente poder trabalhar mais concentrado, em silêncio e sem interrupções, ganhando - lá está - em produtividade ("Tenho notado imenso essa diferença, necessito menos tempo para poder desenvolver um trabalho com maior qualidade"), enquanto conseguia manter o espírito de equipa com uma reunião matinal via net.
Com base nisso, explica António, está agora a organizar uma proposta "para a direção da central da empresa para no caso de manter o teletrabalho facilitar aos funcionários material adequado para o correto desempenho das nossas funções." Exemplifica: "Mobiliário de escritório (cadeiras ergonómicas, mesa), compensar os gastos com internet e ar condicionado (no verão chegamos a ter temperaturas de 41 graus e uma humidade elevadíssima, insuportável sem ar condicionado e menos ainda para estar com um aparelho que emite calor como são os portáteis e os ecrãs dos computadores que usamos)."
Não se trata de generosidade, frisa este diretor de marketing. É que "há gastos da empresa que diminuem: eletricidade, limpeza, consumíveis tanto de escritório como de alimentação (água, café, almoços dos trabalhadores). Estamos a negociar com a central no sentido de encontrar formas de compensar a transferência desses custos para o trabalhador."
E os benefícios para a empresa com a continuação do teletrabalho, considera, vão muito para além dessas poupanças. Desde logo "ao não ter que adaptar os postos de trabalho às novas normativas" relacionadas com a pandemia, ou tratar de encontrar outras instalações mais amplas. "Estamos ainda a tentar entender as implicações que a crise do Covid-19 pode ter no plano de negócio para o próximo triénio, e também a nova realidade dos espaços comuns de trabalho", conclui.
Em contradição com a visão de António, porém, o paradigma do teletrabalho poderá surgir, no pós-pandemia, como uma imposição e uma forma de as empresas pouparem custos, inclusive nos salários. É essa a visão de Mark Zuckerberg, o CEO do Facebook, expressa num anúncio em vídeo esta quinta-feira. Zuckerberg admite que num quadro temporal de cinco a dez anos cerca de 50% dos seus 45 mil funcionários poderão estar a trabalhar de casa e que vai começar a contratar pessoas com essa condição, mas que os salários terão em consideração o custo de vida dos diferentes locais de residência: caso seja mais baixo, a retribuição será ajustada.
Zuckerberg também fez saber que entre os atuais trabalhadores do Facebook 40% manifestaram-se interessados ou muito interessados no teletrabalho, e 60% querem flexibilidade, ou uma combinação entre trabalho no escritório e em casa. A empresa vai manter a maioria em casa até ao fim do ano, embora conte abrir os escritórios para um pequeno número de empregados a partir de julho.
É claro que num mercado de trabalho desregulado como o americano as coisas não funcionam do mesmo modo que num país com mais regras, e no qual, como é o caso de Portugal, o Código do Trabalho já estabelece uma série de condições para o regime em causa. Nomeadamente que deve ser, em regra, o empregador a fornecer os "instrumentos de trabalho respeitantes a tecnologias de informação e de comunicação utilizados pelo trabalhador" e que aquele "deve assegurar as respetivas instalação e manutenção e o pagamento das inerentes despesas" - o que implicará, aparentemente, o custear da internet e demais comunicações.
A lei também especifica que "o empregador deve evitar o isolamento do trabalhador, nomeadamente através de contactos regulares com a empresa e os demais trabalhadores" e "respeitar a privacidade do trabalhador e os tempos de descanso e de repouso da família deste, bem como proporcionar-lhe boas condições de trabalho, tanto do ponto de vista físico como psíquico."
É até salvaguardado que a representação coletiva dos trabalhadores pode continuar a contactá-los: "Qualquer estrutura de representação coletiva dos trabalhadores pode utilizar as tecnologias referidas [as instaladas para o fluxo de trabalho e comunicação dentro da empresa] para, no exercício da sua atividade, comunicar com o trabalhador em regime de teletrabalho."
A emergência, porém, atropelou muitas das garantias e os próprios trabalhadores desconhecem os seus direitos, pelo que há, como sempre, empresas a abusar. Por exemplo as que, como conta Rebeca Moore, do Sindicato dos Trabalhadores de Call-Center, exigiram que os funcionários "assinassem um documento a dizer que não iam ter os filhos em casa durante o horário laboral."
Incrível, não é?, pergunta a sindicalista. Que garante também que se no ramo os empresários resistiram muito a mandar os trabalhadores para casa - "Tivemos de fazer uma greve selvagem para os pressionar" - agora estão já, depois se darem conta de que as coisas funcionam, a recrutar para teletrabalho. Foi tudo tão rápido, admite Rebeca, que o sindicato não tem ainda uma posição definida sobre como lidar com esta nova realidade. Mas crê que a exigência deve ser no sentido de que o regime seja opcional, e de que, caso os funcionários escolha o teletrabalho, as empresas deverão assegurar as condições.
Tem a sua opinião formada, no entanto: "Não é um bom modelo." Como sindicalista, aflige-a desde logo a total individualização e a perda do sentido do coletivo - "As pessoas deixam de contactar com os colegas, até de os conhecer. E como é que se organiza um plenário assim?" Mas vê muitos outros problemas. A dificuldade de criar um espaço autónomo em casa, por exemplo. "Tenho duas colegas que vivem juntas e num T1 e trabalham ambas em call center. Uma trabalha na cozinha e outra na sala. É muito complicado. E há mesmo uma colega que teve de voltar para casa dos pais, porque naquela em que vivia não podiam estar duas pessoas em teletrabalho ao mesmo tempo."
Acresce que geralmente no ramo se trabalha por turnos, e que há não raro situações stressantes: "O ambiente de casa deixa de ser o refúgio. Há uma mistura muito grande do privado e do trabalho e isso tem impacto na saúde mental das pessoas", adverte Rebeca.
Afonso, 25 anos, funcionário de uma operadora que trabalha no atendimento telefónico, queixa-se exatamente disso. "Sendo um trabalho muito desgastante psicologicamente, a viagem para o trabalho e o facto de ter colegas a beira para desabafar acaba por atenuar um pouco os efeitos do stress." Estar a trabalhar em casa "acaba por trazer algumas situações menos felizes para um sítio pessoal. De certa maneira o facto de um cliente estar a gritar comigo "dentro do meu quarto" acaba por me afetar de uma maneira que não afeta num escritório com mais 50 pessoas. Fica mais difícil de "desligar" quando acaba o trabalho. Portanto penso que para mim regressar ao regime normal seria bom."
A ideia de Joaquim Magalhães, responsável da CGTP para o contacto com os media, é de que "a maioria das pessoas sujeitas a esta forma de trabalho considera-a globalmente negativa", pela invasão do espaço familiar, o aumento dos consumos domésticos, extensão do horário de trabalho, impactos psicológicos negativos. Quanto a exigências relativas às condições aplicáveis ao regime, crê que é cedo para partir para isso, apesar de ter noção de que poderá haver pessoas a serem pressionadas a aceitá-lo. "Temos primeiro de ouvir os trabalhadores, saber quais são as suas preocupações antes de avançar com qualquer tipo de ação."
Que preocupações são essas e qual a apreciação que os que estiveram e estão ainda em teletrabalho fazem dele não é ainda sabido. Não se conhece nenhum inquérito nacional nesse sentido sobre um regime, que até agora, de acordo com números recentemente divulgados pelo Eurostat, era apenas o de 6,5% dos trabalhadores nacionais (um pouco acima da média da UE, que era de 5%; os países recordistas eram a Holanda e a Finlândia, com 14,1%).
Mas o inquérito Diários de uma pandemia, uma iniciativa do Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto e do Instituto de Engenharia de Sistemas e Computadores, Tecnologia e Ciência com o apoio do Público que recolhe, através de questionários on line, a experiência individual de mais de uma dezena de milhar de cidadãos entre os 16 e os 89, concluiu que no seu universo estavam em teletrabalho 53% dos respondentes empregados. Esta percentagem diminuiu para 50% na última semana do estado de emergência e para 48% a 10 de maio.
A frequência deste modo de trabalho, de acordo com estes dados, aumenta na razão direta da idade - mais trabalhadores entre os 50 anos e os 64 anos trabalham habitualmente a partir de casa do que os seus colegas mais jovens - e do nível de escolaridade. Quanto menor o nível de escolaridade, diz o relatório do inquérito na semana de 14 de maio, "menos frequente foi o regime de teletrabalho, e maior foi a sua diminuição percentual ao longo do tempo: verificou-se uma descida de 14% para 9% nas pessoas com o ensino básico ou menor (37% de redução percentual), comparada com uma descida de 57% para 52% nos inquiridos com o ensino superior (9% de redução percentual)."
A localização geográfica também é relevante: "O teletrabalho foi mais frequente e diminuiu menos na área Metropolitana de Lisboa, variando entre 59% e 54% (redução relativa: 8%), e menos frequente na região Centro, onde variou entre 46% e 38% no mesmo período (redução relativa: 17%)."
Se cerca de metade ou mais da população empregada tiver estado em teletrabalho e as conclusões retiradas da experiência por uma parte dos trabalhadores e empresas forem no sentido de que resulta a contento de ambos, podemos ver muito rapidamente uma alteração dos regimes laborais.
A consequências cuja bondade ninguém questionará, como as que se refletem no ambiente - desde diminuição da poluição até menor congestionamento no tráfego -, assim como a possibilidade de deslocalização de trabalhadores para zonas menos habitadas, onde o imobiliário é mais barato e a vida mais calma, poderão juntar-se outras menos óbvias e menos benévolas, como o aumento do desemprego.
É o que vê por exemplo Pedro Pisco, um administrador de sistemas em teletrabalho desde 12 de março cuja empresa "descobriu que isto resulta": "As empresas reduzem os espaços de que necessitam, reduzem em manutenção, de uma forma geral, em recursos logísticos e, inevitavelmente, isto será um forte motor de aumento do desemprego porque, a generalizar-se, causará quebras de negócio, por arrasto, em todos os setores."
Aliás algumas das vantagens apontadas pelos teletrabalhadores de emergência, por exemplo gastarem muito menos em refeições, implicam desde logo um menor consumo na restauração que, a manter-se, poderá levar negócios à falência. Por outro lado, o facto de as empresas poderem, em teletrabalho, recrutar a muitos quilómetros de distância poderá implicar uma descida dos salários por haver, em teoria, uma muito maior oferta de trabalhadores para a mesma função.
Embora existam casos a apontar no sentido contrário, como o de João Zamith, 32 anos, copywriter, que em outubro, quando mudou de emprego, optou pela hipótese de teletrabalho. "O meu salário é 50% mais alto que o que me foi oferecido por outra empresa para o regime convencional. E a ideia que tenho é de que os salários para teletrabalho são geralmente mais altos porque se pode em teoria recrutar no mundo inteiro, tendo de se estar preparado para fazer ofertas mais competitivas."
João vivia na zona de Lisboa e mudou-se para Guimarães; a nova empresa está sediada em Viana do Castelo, a cerca de 80 quilómetros. Não só ganha mais como - à imagem de todas as pessoas nesta modalidade - gasta muito menos em transporte e refeições, tendo o valor habitual do subsídio de alimentação transformado num cartão para despesas relacionadas com o teletrabalho. E apresenta outra vantagem ainda: "Antes trabalhava em Alfragide. Num dia mau era uma hora para cá outra para lá. Isso mais o horário de trabalho mais a hora do almoço em que não saías da empresa, eram 11, 12 horas que ficavas ali, mesmo que não tivesses trabalho. Agora, bem gerido, o meu trabalho não ocupa as oito horas diárias. Tenho ouvido as pessoas dizer que neste regime acabam por dedicar mais horas, mas acho que se calhar isso é porque as empresas não estão preparadas para gerir teletrabalho."
Deve-se fazer da crise uma oportunidade, como advogava João Paiva, professor na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto, a 28 de abril, num artigo de opinião no Público sobre teletrabalho, no qual advertia para a necessidade de se abandonarem "as lideranças infantilizantes, que não confiam nos colaboradores e insistem nas práticas de gestão focadas na monitorização instrumental"?
Talvez, como diz ao DN Celso Martinho, da tecnológica Bright Pixel, não haja outra hipótese para uma parte das empresas, que o farão "por necessidade e sobrevivência", acelerando um processo que crê ser inevitável. Mas não se creia que é uma solução sem perversidades nem externalidades negativas, desde logo em termos da mera socialização - do contacto humano.
Há, claro, quem, como Ricardo Torres, de 40 anos, a trabalhar em recursos humanos, goste disso mesmo, "da rotina de estar sozinho, com as minhas coisas, no meu canto", de "marcar o meu ritmo, de viver numa cidade pequena e trabalhar para uma multinacional, de acordar às 7.30h, ir correr, arranjar-me e começar a trabalhar às 8.30h." Ou, prossegue, "de ficar no meu escritório a trabalhar madrugada fora com a janela aberta, de não ter de correr para os transportes, dos mecanismos que o distanciamento introduz na dinâmica da organização. De ter espaço para pensar. De ter tempo para trabalhar. De poder virar-me para trás e tirar um livro meu da prateleira. Gosto daquela piada de que todas aquelas reuniões poderiam ter sido emails ser mesmo verdade. Gosto de hoje ter interrompido o trabalho às 15h para estar com os meus pais e recomeçar agora, sem qualquer stress."
E há quem, como Rui, de 45 anos, lamente o facto de "o contacto direto com os colegas passar a ser nulo." Porque, explica, "para mim é fundamental o contacto direto. Porque permite criar um tipo de relação mais próxima, permite cinco ou 10 minutos de pausa para um café que faz sempre falta para manter a sanidade mental." É por isso sobretudo que, diz, "podendo escolher prefiro trabalhar fora de casa, prefiro a rotina do trânsito com a vantagem de contactar com pessoas, de simplesmente ver pessoas quer seja no trabalho, quer seja por fazer refeições fora e ter a oportunidade de dar um passeio de 10 ou 15 minutos a pé no final do almoço ou até por ir tomar um simples café. Havendo pandemia deixem-me estar em casa (e deixam) mas não havendo deixem-me ir para o local habitual de trabalho."
Conclui Ricardo: "Por fim, por princípio acho que a gestão do trabalho numa organização deve ser feita assim sempre. Quem pode e quer não deve ter qualquer obstáculo a trabalhar em casa." E quem não pode ou não quer não deve ser obrigado. Seria assim - se tudo corresse bem.
Nota: texto alterado às 00.55 de 26 de maio, para rectificar o título do livro de Dickens citado: é História de Duas Cidades e não Grandes Esperanças, como erradamente se escreveu.