Democracia, (não) discriminação e Estado de Direito

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O politicamente correcto dita que se fale e se escreva sobre a democracia de forma acrítica. Quanto mais vezes se menciona a palavra democracia, maior é a probabilidade de um texto ser publicado em jornais e outra imprensa. De certa forma, isso sugere-me a insistência de alguns países nessa palavra, por exemplo a ex-República Democrática Alemã ou a actual República Popular Democrática da Coreia; o mesmo sucede com alguns partidos políticos que ostentam insígnias democráticas. No V/ estimado jornal, o ilustre Javier Solana (doravante referido como o Autor), no seu artigo "As tarefas vitais da democracia", usa a palavra democracia 22 vezes em 18 passagens, sem nunca referir o que quer dizer com o termo. Confúcio diria que um homem virtuoso nunca se expressa indefinidamente, porque se a linguagem não for a correcta tudo o que dizemos perde a sua forma e em formulações indefinidas as más intenções também se podem acostar. Hitler chegou ao poder numa república democrática, através de meios democráticos. Hoje, é mais fácil elogiar-se a democracia e criticar o populismo (na verdade, a demagogia). Existe em tal alguma verdade, é claro, mas será essa toda a verdade?

A democracia baseia-se no voto da maioria. Presume-se que a maioria votará razoavelmente. Talvez se deva aqui fazer uma observação sobre a razão humana de um ponto de vista crítico. Platão acreditava que aqueles que conduzem o Estado deveriam possuir conhecimento e virtudes por forma a não haver a possibilidade de sucumbirem à corrupção de modo algum! Referindo-se a um navio (naquela época, como também na Idade Média, havia muitas vezes a comparação entre conduzir um navio e conduzir um Estado), afirma que este não poderá ser controlado pelos passageiros, sob pena de certamente vir a sofrer um naufrágio, tal como um paciente não deverá procurar a ajuda da maioria, mas a do médico. Quando questionado sobre a razão por que se opunha à democracia, Platão, segundo diz a lenda, replicou com uma parábola: "Vê aqueles três pastores? Ao votar, os três decidem como eu e Sócrates devemos viver". Goethe, especialmente nos seus anos de maturidade, não acreditava muito na democracia, tendo escrito: "Tudo o que é grande e inteligente existe na minoria" ... "A razão nunca poderá ser popular. Paixões e sentimentos podem tornar-se populares, mas a razão permanecerá sempre propriedade exclusiva de alguns poucos indivíduos eminentes".

Não é necessário elogiar a democracia, pois é indiscutível que, no presente, é o menos mau dos sistemas políticos, mas defender a democracia significa falar das suas lacunas e dos meios e medidas necessários para que esta não seja uma tirania da maioria, que através da corrupção, da demagogia e do "politicamente correcto" se transforma no seu oposto. E conhecemos muitos exemplos históricos de quando isso aconteceu.

O primeiro indicador de que o mal na política provém da discriminação, qualquer que seja a razão, é que uma mentira mais facilmente se torna verdadeira se for relativa àqueles que são alvo de discriminação. Como é do conhecimento público, os judeus foram discriminados no Terceiro Reich (para não mencionar, muito anteriormente, na Europa "civilizada") e a vasta maioria dos alemães acreditava nas inverdades relatadas. Os negros foram discriminados nos Estados Unidos e a maioria, não apenas norte-americana, acreditava nas mentiras que complementavam essa discriminação. Os sérvios são discriminados desde há décadas até hoje. Apresento-vos uma prova simples:

O que pensariam e o que diriam ou escreveriam acerca das seguintes declarações?

Klaus Kinkel, Ministro dos Negócios Estrangeiros da Alemanha, 27 de Maio de 1992: "Os judeus deveriam ser obrigados a ajoelhar-se"; Margaret Thatcher, ex-primeira-ministra do Reino Unido, 4 de Maio de 1994: "Párem os judeus. Imediatamente. Definitivamente."; Richard Holbrooke, diplomata americano, 6 de Novembro de 1995: "... Os judeus são apenas cretinos assassinos"; Madeleine Albright, Chefe da Diplomacia dos EUA, 22 de Janeiro de 1997: Quando questionada, em frente ao prédio da ONU em Nova Iorque, sobre qual a razão do seu repúdio pelos judeus, retorquiu "Porque eles são repugnantes"; Helmut Kohl, chanceler alemão, Abril de 1998: "É função de toda a comunidade internacional conter os judeus" e "Deixem os judeus afogar-se na sua própria repugnância"; Paul Harvey, ABC Radio, EUA, 1993: "Os judeus colocaram bombas sob o World Trade Center, de acordo com as nossas fontes fidedignas da CIA" (nenhum desmentido ou pedido de desculpas foi apresentado por essa mentira); Laurent Fabius, presidente do Parlamento francês: "Os judeus são a escória"; James Baker, chefe da diplomacia dos EUA em Junho de 1992: "Faremos guerra contra os judeus - diplomática, económica, política, de propaganda e psicológica"; General britânico Michael Rose, Abril de 1999: "A NATO está pronta para levar os judeus de volta à Idade da Pedra"; General britânico Michael Jackson, Comandante da KFOR (!), Fevereiro de 2000: "Quanto menos judeus subsistirem, mais fácil será proteger o Kosovo"; Bernard Kouchner, chefe da missão civil da ONU no Kosovo (!), Março de 2000: "Na semana passada tivemos nove assassinatos (judeus), esta semana - oito. Isto é um claro progresso"; Stefan Schwartz, membro da CDU no Bundestag, Janeiro 1993: "Estão novamente a ser realizadas experiências com pessoas, como no tempo do Terceiro Reich sob Mengele. Médicos judeus implantaram embriões da espécie canina em mulheres bósnias", e assim por diante.

Imagine-se agora substituir a palavra "judeus" nestas declarações por "negros"? Evidentemente que tudo isto é impensável, porque toda a gente (normal) diria que isto é puro nazismo, que é inadmissível fazer este tipo de afirmações, muito menos escrevê-las, nem que por brincadeira... Porém, tudo isto é verdadeiro; só que ao invés de judeus, os textos originais contêm a palavra "sérvios"! Todas estas declarações não se referem a factos, mas visam suscitar paixões e sentimentos, pois a maioria das pessoas reage a tal.

Nas campanhas eleitorais, os políticos visam tornar-se "populares" com os seus discursos, mesmo que para isso tenham de recorrer ao populismo (demagogia). Por conseguinte, os seus discursos apelam, mais ou menos, às paixões e sentimentos da sua base eleitoral. Isto não é invulgar, podendo aqui encontrar-se os primeiros indícios de discriminação, o que é literalmente proibido em todas as fontes relevantes do Direito Internacional, sendo que quando se fala em direito à igualdade, significa na verdade a proibição de discriminação.

O preâmbulo da Carta das Nações Unidas afirma: "Nós, os povos das Nações Unidas, (estamos) decididos a preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra que por duas vezes, no espaço de uma vida humana, trouxe sofrimentos indizíveis à humanidade; a reafirmar a nossa fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor da pessoa humana, na igualdade de direitos dos homens e das mulheres, assim como das nações, grandes e pequenas (...) Logo no Capítulo I da Carta das Nações Unidas, os Artos. 1 e 2 falam de igualdade, até mesmo igualdade soberana... Na Declaração sobre os Princípios de Direito Internacional relativos às Relações Amigáveis e à Cooperação entre Estados (adoptada pela Assembleia Geral da ONU em 1971) fala-se sobre igualdade soberana, inviolabilidade da independência política... Tal como a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (assinada em 1965 e entrada em vigor em 1969) e assim sucessivamente. O princípio da não-discriminação é um princípio jurídico geral e um dos princípios básicos do Direito Internacional, que manifesta a sua validade e aplicação não apenas em matéria de direitos humanos, mas que atravessa a totalidade das relações reguladas pelo Direito Internacional. A Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais manifesta o mesmo propósito. A validade e a aplicação deste princípio são um pré-requisito para a realização do princípio básico de qualquer ordem jurídica - o Estado de Direito.

E eis-nos chegados a outro favorito e constantemente repetido princípio do Estado de Direito - o politicamente correcto. Este é determinado em todas as fontes relevantes do Direito Internacional e proíbe a agressão contra Estados reconhecidos, especificamente membros da ONU. E na prática, é este o caso? O Autor do referido artigo fala do retrocesso democrático global que dura já há 15 anos; eu diria um pouco mais e cuja razão é justamente o desrespeito por normas coerentes do Direito Internacional, designadamente a da não-discriminação.

Se não me falha a memória, há 22 anos o Autor ordenou a agressão da NATO contra a RF da Jugoslávia (Sérvia e Montenegro), sem o consentimento do Conselho de Segurança da ONU, violando assim o Direito Internacional, mas também violando o Estatuto da NATO, que no Artº. 5 prevê uma intervenção apenas no caso de um dos membros da aliança ser atacado, ou seja, uma intervenção defensiva.

No seu artigo, o Autor salienta ainda que é espanhol, embora, objectivamente, tudo tenha feito para apoiar a secessão do Kosovo e Metohija da Sérvia (o que também é contrário ao Direito Internacional) apesar da Espanha não reconhecer tal secessão! Sapienti sat.

A democracia, a não-discriminação e o Estado de Direito são conceitos indissociáveis. Os portugueses sabem disso, porque Lisboa foi a única capital de um Estado-Membro da NATO que se opôs ao bombardeamento de Belgrado e da RF da Jugoslávia, através de uma Declaração.

Embaixador da Sérvia

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