"É assustador." Teresa Valido, 24 anos, não chegou a cruzar-se com o Harrison, o exame de acesso à especialidade médica realizado no final do sexto ano do curso de Medicina que terminou no ano passado, mas adjetiva o teste substituto como se nada se tivesse alterado. "Podemos não conseguir concluir o percurso se o exame não correr bem, porque é inevitável fazer este teste para termos uma especialidade", diz a estudante da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa. Na próxima segunda-feira, mais de dois mil alunos fazem, pela primeira vez, a prova nacional de acesso à formação especializada (PNAFE). São quatro horas que levaram um ano a preparar, com maratonas de estudo diárias que atingiram uma dúzia de horas para a maioria..Teresa começou a ler a bibliografia para o exame há 12 meses. No início - ainda em estágio e com a tese na área da educação médica por concluir - dedicava três, quatro horas por dia ao estudo. A partir de julho intensificou o ritmo, "fazia um horário das 09.00 às 21.00". "Estou a tentar não ficar na faculdade a estudar até à meia-noite e ter um número de horas de sono razoável", indica. Continuou o trabalho como vice-presidente da Federação Académica de Lisboa, mas abdicou das férias de verão, diminuiu as idas a casa, em Évora, e de parte do tempo com a família, amigos e namorado.."Isto não é um sprint, é uma maratona. É para ir correndo e mantendo a sanidade mental", compara a estudante. Mas a pressão - acrescida por saber que as vagas para os futuros médicos especialistas estão contadas e são insuficientes - não passa despercebida. "Não gosto muito de pensar sobre isso, mas obviamente que é um exame que define a nossa vida e é muito difícil lidar com essa pressão e com as expectativas que temos e que os outros têm de nós.".Os alunos que não conseguirem atingir a nota necessária para ocupar uma das 1830 vagas disponíveis neste ano terão de repetir o exame. Sem especialização só poderão trabalhar como médicos tarefeiros de medicina geral ou ir para o estrangeiro.."Há 40 anos, instituiu-se uma prova de acesso aos internatos, baseada nos cinco capítulos do tratado da medicina Harrison [o nome do editor], que se levou à exaustão. Era um exame tipicamente de memorização, que mostrava ser preferível os alunos estarem em casa a estudar a estarem no hospital a conhecer doentes. O novo exame vem mudar isso", explica Serafim Guimarães, o responsável pelo Gabinete da Prova Nacional de Acesso..A organização norte-americana National Border Medical Examiners é a fonte de inspiração para a nova prova, que foi "adaptada à realidade nacional. Teoricamente é do melhor que há", garante o professor catedrático da Universidade do Porto. Impressão confirmada por candidatos e avaliadores, depois do teste piloto, realizado em novembro do ano passado, pelos alunos do sexto ano. "Foi importante para perceber a estratégia das perguntas e testar o tempo. Quatro horas parece muito para 150 perguntas, mas se pensarmos que cada pergunta é o caso de um doente, não é fácil tratar alguém num minuto e meio", lembra Teresa..O negócio à volta do teste.Tal como quase todos os candidatos, Teresa preparou-se através de um curso feito numa das muitas academias que nasceram para descodificar o exame. Durante o verão, frequentou aulas de discussão de resultados clínicos e depois recorreu a plataformas online também de preparação para o teste. Gastou quase mil euros entre livros, aulas e acesso a ferramentas de estudo na internet..Inês de Castro, 23 anos, que na segunda-feira fará o exame no Porto, recorreu só às plataformas de apoio online. "Escolhi não fazer nenhum curso presencial, como os meus colegas, e foi ótimo, porque escolhi a ordem pela qual queria estudar a matéria", diz a aluna do Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar, da Universidade do Porto. Pagou um curso (cerca de 500 euros) no site Perguntas e Especialidade - a primeira plataforma a disponibilizar aulas em vídeo sobre todos os temas testados na nova prova, em Portugal.."Nós estamos numa época cada vez mais digital, em que o YouTube tem milhões de subscritores. Este tipo de plataforma já existe no estrangeiro, em Portugal ainda não havia uma com vídeos, o que não fazia sentido tendo em conta que a bibliografia é tão extensa e isto ajuda", refere o médico Tomás Pessoa e Costa, o criador da plataforma..Funciona como um curso online com mais de 260 aulas, dadas por 74 especialistas, disponíveis para responder às dúvidas dos estudantes. "É difícil para um aluno comparar sozinho o que se diz num livro com o que se diz noutro e é muito importante ter essa informação adaptada à matéria portuguesa." Tomás fala por experiência própria. Fez o exame - o Harrison - há três anos e a nota máxima (100%) garantiu-lhe a primeira vaga no serviço de dermatologia do Hospital dos Capuchos, em Lisboa..100% no exame mais temido."Eu lembro-me de que saí do exame exausto, porque o que interessa é o que se faz naquele dia", recorda Tomás. A receita para acertar em todas as respostas passou por enfrentar a pesada carga horária de estudo como um emprego a tempo inteiro: "O meu trabalho era estudar. Eu estudava das 09.00 às 20.00 e depois ia para os treinos de judo e de futebol.".Mais rigoroso ainda foi Diogo Bernardo Matos, o primeiro classificado no exame de 2018, com 100% também. Começou a estudar 13 meses antes e, depois de terminar o estágio, garantia 12 a 13 horas diárias de estudo. "E eu sou um pouco espartano a contar as horas", garante o interno de oftalmologista do Hospital de Santa Maria, em Lisboa. "Tive de abdicar de algumas coisas a nível pessoal, mas felizmente tive uma família e amigos que me ajudaram nesta batalha. É uma altura muito dura para todos os candidatos", reforça o médico de Coimbra..E neste ano o volume de matéria aumentou. Se no Harrison os futuros médicos eram avaliados apenas em matérias de medicina interna, a PNAFE integra perguntas sobre as áreas de especialização, como cirurgia, ginecologia-obstetrícia, pediatria, psiquiatria. Já a quantidade de informação que é preciso decorar diminui, o que agradou aos estudantes. "Eu acho que para o ano vamos ser internos muito mais capazes. Sinto que num ano de estudo aprendi muito e tudo coisas úteis, que vou usar", diz Inês de Castro, do Porto..600 alunos vão ficar de fora.Todo este esforço não garante aos alunos uma vaga na especialidade. São 2394 estudantes para apenas 1830 vagas, segundo dados da Administração Central do Sistema de Saúde. Apesar de o número de lugares ter aumentado em relação aos últimos dois anos, o número de candidatos também é superior.."O Serviço Nacional de Saúde [SNS] está a investir ao contrário. Está a criar mais prestadores de serviços e a aproveitar menos os médicos que deveriam ingressar na especialidade. O SNS tem défice de médicos, apesar de Portugal ter profissionais em número suficiente. Deveríamos estar a investir mais na qualidade da formação", pede Vasco Mendes, presidente da Associação Nacional de Estudantes de Medicina..Mas na segunda-feira não há espaço para este pensamento na mente de Teresa e Inês. Estão prestes a cortar a meta: "São muitas, muitas horas a estudar. É uma época de exames vezes mil", diz Inês. "Mas, mentalmente, sinto-me bem. Vou tirar o fim de semana para descansar e fazer uma massagem, porque o importante é estarmos prontos na segunda".