Debate sobre canábis não é coisa de hippies

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No debate sobre legalização da canábis para fins medicinais é preciso relembrar que se trata de uma planta medicinal antes de ser uma droga com potencial de abuso. Se a canábis for tratada por aquilo que é, uma planta medicinal, o debate deverá incluir os benefícios e não somente os riscos. E devemos perguntar: que necessidades terapêuticas poderiam ser satisfeitas se a Cannabis sativa estivesse disponível nas farmácias portuguesas? Poderia substituir total ou parcialmente outras terapêuticas com efeitos adversos mais graves? Que outros benefícios se anteveem com a liberalização do seu cultivo para fins medicinais? E como implementar?

As flores da planta fêmea seca da Cannabis sativa contêm tetrahidrocanabinol (THC), o psicoativo responsável pela alteração das capacidades sensoriais e efeitos analgésico, antiemético, relaxante e de estimulação do apetite. E o canabidiol (CBD), sem efeito psicoativo comparável, modula a atividade do THC, podendo diminuir o seu efeito, e tem propriedades anti--inflamatórias, ansiolíticas, antidepressivas, analgésicas, antioxidantes, neuroprotetoras e antineoplásicas em modelos in vitro ou animais.

É usada há milénios como planta medicinal, constando dos primeiros textos médicos da antiga Mesopotâmia e das farmacopeias dos cinco continentes até à sua remoção nos anos 30 do século passado na sequência de uma propaganda nos Estados Unidos destinada a acabar com a produção de cânhamo. Seguiram-se 80 anos de proibicionismo que impedem a investigação médica dos mais de 400 compostos de interesse farmacológico presentes na planta. A situação alterou-se ligeiramente a partir dos anos 1990 com a descoberta do sistema endocanabinoide pelo israelita Ralph Mechoulam. Várias linhas de investigação foram então iniciadas; quase todas concentradas em Israel, onde a legislação per- mite o cultivo de canábis para fins medicinais e o governo aposta nesta área de desenvolvimento.

Neste ano, a Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos, aplicando os mesmos métodos de medicina baseada na evidência usados para aprovar medicamentos, sintetizou a literatura sobre eficácia e segurança da canábis e seus extratos, e concluiu: "Há evidência conclusiva ou substancial de que a canábis ou canabinoides são eficazes no tratamento da dor crónica em adultos." Também o Departamento Federal de Saúde Pública Suíço (BAG), o Ministério da Saúde Canadiano (Health Canada) e o Instituto Federal dos Medicamentos e Dispositivos Médicos alemão (BfArM), entre outros, avaliaram o acesso à canábis medicinal. Em todas estas jurisdições a legislação foi revista. Os doentes passaram a ter acesso à planta e aos seus extratos sob prescrição médica.

Em Portugal, um milhão de portugueses sofrem de dor crónica debilitante. Mas só 44 000 usam analgesia opiácea, i.e., medicamentos derivados da morfina. Tendo em conta o perfil toxicológico relativamente mais desfavorável dos opiáceos face aos canabinoides, haverá pelo menos 44 000 portugueses que potencialmente poderiam beneficiar dos efeitos analgésicos da canábis se as flores estivessem disponíveis na farmácia e os extratos pudessem ser formulados como medicamentos manipulados.

Outro exemplo é a ação anticonvulsivante do canabidiol (CBD), que uma vez extraído da planta pode ser formulado em tintura (solução alcoólica), constituindo--se como alternativa ou complemento aos antiepilépticos atuais para os entre nove e 15 mil casos de epilepsia resistente em Portugal, incluindo crianças.

E há a questão da sustentabilidade do orçamento da saúde. Se o Sativex, o único medicamento derivado da canábis com autorização de introdução no mercado, mas não comercializado, em Portugal, tivesse comparticipação para esta indicação poderia custar ao erário público entre euro55 e 130 milhões. Se fosse formulado em farmácia de oficina e no quadro atual de comparticipação para medicamentos manipulados, o custo seria de 9,3 a 18,5 milhões de euros.

Acresce que o fim da proibição em 29 estados americanos, a legalização no Canadá e na Alemanha catapultaram a procura externa. O mercado cresce a 33% ao ano e valerá pelo menos 40 mil milhões em 2021.

Existem hoje diferentes modelos de regulação da canábis medicinal que podem inspirar o legislador nacional. Focando apenas os países de referência para Portugal em saúde pública que legislaram sobre a matéria, como Alemanha, Suíça e Canadá, tendo em conta o regime jurídico dos medicamentos de uso humano, e, de acordo com a posição também da Associação Nacional Cannativa, o modelo que consegue conciliar acesso e proteção parece ser o canadiano. Adaptado à realidade nacional significa que doentes com prescrição médica passam a poder adquirir flores de canábis de qualidade controlada ou formulações à base dos seus extratos nas farmácias portuguesas. Os doentes ou pessoas por ele designadas podem ainda produzir pequenas quantidades para uso terapêutico pessoal.

Este debate não é uma coisa de hippies. A perseguição à canábis penaliza quem precisa de proteção: um doente seropositivo enfrenta uma pena de prisão por preferir cultivar quatro pés de canábis para seu uso terapêutico pessoal ao invés de aviar uma receita de morfina; ou a mãe de uma criança que sofre de epilepsia resistente é detida por extrair canabidiol da planta para não ter de a submeter a uma estimulação cerebral profunda.

* Diretora de Economia e Resultados em Saúde na indústria farmacêutica em Basileia, Suíça

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