De Viena à Ceilândia vai um passo do real...
Portugal está em todo o lado na Berlinale, mesmo quando o filme não é português, como é o caso de uma co-produção entre a Argentina e a Áustria intitulada A Little Love Package, de Gastón Solnicki, crónica sobre pequenos nadas a envolver uma relação de duas mulheres entre Viena e algures perto de Málaga. Na verdade, esta pequenina pérola art-house tem como diretor de fotografia Rui Poças e na pós-produção de imagem Marco Amaral, ou seja, um look português que é capaz de dar ao filme cores quentes e um certo enlevo de luxo. A história começa em Viena em 2019, na altura em que se sente o efeito da lei que proíbe o tabaco no interior dos cafés. Uma lei que veio pôr fim a um sistema cultural e de tradição que se confunde com a própria identidade dos vienenses nas Kaffehauses. Curiosamente, a narrativa (?) anda à volta da amizade de duas mulheres maduras estrangeiras, Angeliki, uma divertida neurótica grega a contas com um desejo de encontrar casa nova, e Carmen, britânica exilada na Áustria a contas com um problema familiar em Espanha. Para lá deste fait-divers de primeiro mundo, a câmara aponta ao esplendor invisível das pequenas coisas: a beleza da produção de queijos vienenses, detalhes da arquitetura moderna, embirrações com os ovos ao pequeno-almoço ou segredos de uma Kaffehaus castiça. Depois, numa segunda parte, apanha-se a boleia para Málaga onde Carmen é confrontada pelas irmãs e tem de resolver uma forma de estar mais perto do pai, ocasião para a sua filha estar em contacto com os primos e com a beleza de uma região espanhola perto dos poderes do mar.
A Little Love Package passou na secção Encontros e teve uma simpática euforia junto de alguma crítica mercê de um feitiço interior que permite a exposição da sua própria descoberta experimental de matérias e tempos. Um filme, então, à procura da sua linhagem e a convidar quem o vê a ser cúmplice dessa aventura. Uma aventura por vezes turbulenta e aparentemente aleatória mas cujo efeito parece surtir na segunda metade. O cineasta argentino está fascinado com os tais pequenos nadas de Viena e a sua corte seduz, seduz-nos. Tinha tudo para ser o típico filme-capricho para embirrar mas torna-se antes uma ode ao esplendor das pequenas coisas, uma comédia de humor invisível tão subtil como charmosa. Importante, claro, ter Carmen Chaplin a fazer uma versão "verdadeira" de si mesma, mesmo quando a pauta aponta a um tom de tratado de nonsense com uma liberdade de registos muito calculada, mesmo, ou sobretudo, quando são convocados meteoritos. Enfim, apenas pistas para um puzzle que olha para Viena como cidade de segredos cósmicos...
Menos conseguido é Mato Seco em Chamas, da portuguesa Joana Pimenta e do brasileiro Adirley Queirós, radical objeto que propõe dialogar uma ideia de ficção através de um registo documental e onde se relata um incidente em Ceilândia, em Brasília, onde um grupo de mulheres liderado por uma gasolineira chamada Joana Darc conseguiu controlar o tráfico de gasolina. Através do depoimento de Léa, detida na prisão de Colmeia, monta-se a descrição de um feito épico que se tornou numa história de crime que afetou a região e ameaçou os poderes estabelecidos, não só do lado da lei como do lado da máfia organizada. Como se do povo nascesse um desejo de controlo pelo petróleo que era roubado, tudo isto com os ecos da chegada ao poder de Bolsonaro.
A dupla de realizadores tenta montar uma espécie de Mad Max realista com a bandeira do poder feminino à boleia do #MeToo, mas tal como Era uma Vez em Brazília, de Queirós, os ritmos e toda a carga do tempo realista estão envolvidos numa monotonia preguiçosa e o poder de choque esbate-se. Mato Seco em Chamas é um case study de um objeto com boas intenções mas preso ao seu próprio caos indulgente, mesmo se contarmos o quão fascinante é esta apropriação a um estado de espírito de um povo esquecido e a figuras reais que não conseguem escapar à vida do crime.
Nos seus melhores momentos, Mato Seco em Chamas tem boas intenções incendiárias e de desobediência civil, mas a sua mensagem anti-sistema parece sempre previsível, mesmo quando se potencia uma reflexão séria sobre o sonho perdido de um povo. Em suma, um objeto que precisava de maior e melhor contexto informativo para um espetador desprevenido e que não se distingue de tantos filmes brasileiros do real com aspirações a obra de combate. É pena, esta ficção arrancada ao real tinha tanto potencial...
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