De condenado a sete anos e meio por violação a absolvido. Vítima recusou depor
No julgamento que decorreu no Tribunal de Évora, a tensão foi grande. Em causa estava a violação de uma jovem mulher quando tinha 17 anos. O acusado era o seu padrasto. A surpresa aconteceu quando a vítima foi chamada como testemunha pelo tribunal. "Não quero falar", insistiu e manteve a decisão, mesmo perante as palavras duras dos magistrados.
Apesar de ser assistente, não testemunhou mas o tribunal acabou por condenar o homem a sete anos e meio de prisão com base no depoimento de três testemunhas a quem a jovem tinha anteriormente contado o que se havia passado. Esta prova indireta foi agora considerada prova proibida pelo Tribunal da Relação de Évora. O resultado foi a absolvição do homem.
Logo após a recusa da ofendida em falar em tribunal, os juízes que compunham o coletivo ordenaram a sua detenção para ser constituída arguida por falsas declarações e ser julgada de forma sumária. Acabou por ser absolvida. Os factos em causa ocorreram em 2013. A jovem apresentou queixa na polícia em junho de 2015, mas ainda antes de ser deduzida a acusação desistiu da queixa. Mas era assistente no processo. O julgamento teve lugar em 2017. O recurso foi agora decidido.
A acusação dizia que o homem transportava a enteada todos os dias à noite quando encerrava o café que explorava e onde a jovem também trabalhava. Numa noite, terá acontecido o crime. O homem terá seguido por uma via que não era habitual e quando chegou a um local isolado disse à rapariga que podia resolver um problema de saúde que afetava o seu namorado. Mas para tal tinha que fazer sexo com ele. A jovem terá recusado e foi, então, que o o homem sacou de uma navalha e a ameaçou. De seguida concretizou a violação e alertou a enteada para não dizer nada a ninguém.
Estes são factos dados como provados no julgamento de primeira instância. A acusação era mais grave, já que imputava mais crimes de violação ao arguido, sempre nas mesmas circunstâncias, quando se deslocavam de carro no final do dia no café entre 2012 e 2013. Mas não foram dados como provados e o acórdão condenou o homem por um crime de violação agravada na pena de sete anos e meio de prisão. Foi absolvido de um crime de violação em trato sucessivo. No julgamento o acusado não falou, mas na contestação escrita negou todos os factos.
Para chegar a esta decisão, o tribunal teve em conta os testemunhos de três pessoas com quem a jovem tinha desabafado após ter decidido que não viajaria mais com o padrasto de automóvel. São pessoas próximas dela e, quando tomaram conhecimento, foram com a mulher, hoje com 23 anos, a casa da família tendo confrontado a mãe da jovem com os crimes. Esta mudou a sua versão dos factos ao longo de todo o processo, tendo defendido o companheiro no julgamento. O tribunal "valorou, essencialmente, o depoimento conjugado prestado pelas testemunhas (...) que, de forma descomprometida, sincera, objetiva e imparcial, relataram a forma como, a dado dia, a Assistente lhes confidenciou ter o arguido atuado da forma aí descrita., concretizando como, aquando da realização do seu transporte para casa, o seu padrasto a havia levado para a localidade do Rosário, a havia instado a manter com ele relações sexuais a pretexto da cura da doença do namorado e como, perante a recusa desta, lhe havia encostado uma navalha ao corpo", lê-se na decisão de 11 de novembro de 2017.
Foi com base nesta prova obtida para a condenação que o arguido recorreu, tendo ainda criticado a intervenção do coletivo no que toca à posição da assistente, que foi acusada por não falar. "A ideia transmitida do alto da mesa do tribunal por parte de um Mmo juiz que uma cidadã assistente ... " não tem vontade" ... e está obrigada a falar "... custe o que custar" ... e que, por esse facto, pratica um crime e será condenada não é própria de um Estado de Direito democrático", escreveu o seu advogado no recurso para a Relação de Évora.
Neste tribunal superior, foi a desembargadora Maria Filomena Valido Viegas de Paula Soares, auxiliada por José Proença da Costa, quem avaliou o recurso e mudou a decisão. Perante a recusa da ofendida em prestar declarações em julgamento, os testemunhos indiretos "não podem ser considerados válidos e a sua valoração não é permitida, outrossim, é proibida", diz o acórdão datado do dia 21 de maio passado.
Como tal prova por depoimento não é válida, "forçoso é concluir que tal factualidade há de ser considerada e dada como não provada, importando necessariamente a absolvição do arguido dos factos e crime por que foi condenado na primeira instância."
Se isto já bastaria para anular as provas, os desembargadores foram ver se os referidos depoimentos podiam ser, se fossem válidos, indicadores do crime de violação. E dizem que não. "Tendo-se procedido à audição do CD contendo a prova gravada produzida em audiência de julgamento, não podemos deixar de afirmar que a mesma, maxime o teor dos depoimentos prestados pelas testemunhas (...) nunca consentiria a conclusão afirmada pelo Tribunal", lê-se no acórdão.
Tendo em conta que as três testemunhas descreveram, de forma diferente o ato sexual que a ofendida lhe tinha relatado - uma disse que "ele a violou", outra que a ameaçou "para lhe fazer o serviço" e a terceira testemunha disse que ele teve com ela "relações sexuais" -, a Relação questiona como os colegas da primeira instância chegaram à conclusão do crime de violação de violação agravada. "Vale o exposto por afirmar que a prova produzida na instância, em nossa opinião, não permite, em consciência e com a necessária certeza e segurança que um juízo de censura jurídico-penal impõe, a imputação ao arguido dos factos e crime cuja prática lhe é assacada", concluem os juizes-desembargadores.
Acabam por fazer um sumário da decisão em que a absolvição é justificada: "Perante a ilegítima recusa da ofendida/ assistente em prestar declarações na audiência de julgamento, os depoimentos indiretos prestados pelas testemunhas, com base no que lhe ouviram dizer, que não se mostram abrangidos pelas exceções previstas do n.º 1, in fine, do artigo 129.º, do Código de Processo Penal, não podem ser valorados pelo tribunal para formação da sua convicção, pois constituem prova proibida." "Na impossibilidade de valoração desses meios de prova, na parte indireta, fica sem qualquer suporte a possibilidade de imputação ao arguido dos atos concretos que vem descritos como integrantes do crime de violação, impondo-se, em consequência, a sua absolvição."