De Catarina, a Grande, a Lenine. A lição de história de Putin para reconhecer Lugansk e Donetsk

Numa declaração de mais de uma hora, o presidente russo garantiu que a Ucrânia não é "um Estado", tendo sido "roubada" à Rússia pelo colapso da União Soviética. O seu reconhecimento da independência de Lugansk e Donetsk foi criticado pela comunidade internacional, com EUA e UE a prometerem mais sanções à Rússia. Putin ordenou a mobilização do Exército russo para "manutenção da paz" nos territórios separatistas.
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Sentado sozinho a uma secretária branca, Vladimir Putin foi ouvindo à vez membros do governo, militares e chefes da segurança, que se dirigiam a ele a partir de um pódio, defender o reconhecimento por Moscovo da independência das autoproclamadas repúblicas populares de Donetsk e Lugansk, na região do Donbass no leste da Ucrânia. Mas foi através de uma mensagem televisiva transmitida pelo canal Rossiya 24 que lhe chegou o pedido de Denis Pushilin e Leonid Pasechnik, líderes dessas regiões, no mesmo sentido.

"Em nome de todos os povos da república popular de Donetsk, pedimos-lhe que reconheça a república popular de Donetsk como um Estado independente, democrático, social e legal", disse Pushilin. Pedido a que Pasechnik fez eco: "Caro Vladimir Vladimirovich [nome do meio de Putin], a fim de evitar a morte em massa dos habitantes da república, peço-lhe para reconhecer a soberania e a independência da república popular de Lugansk."

O presidente russo começou por dizer: "Ouvi as vossas opiniões. A decisão será tomada hoje." E foi mesmo. Ao início da noite, num discurso à nação que durou mais de uma hora, Putin confirmou ter assinado o decreto que reconhece a independência dos separatistas e que precisa agora da aprovação do parlamento. "Estou certo de ter o apoio do povo russo. Obrigado!"

Numa espécie de lição de história, Putin procurou provar que a Ucrânia não é "um Estado", tendo sido "roubado" à Rússia pelo colapso da União Soviética, em 1991. E sublinhou que, como tal, não tem "uma tradição própria de Estado". O presidente russo também não poupou a NATO, que acusou de, com os EUA, estar a fazer da Ucrânia um "teatro de guerra".

O presidente russo acusou ainda as autoridades de Kiev de "corrupção". E a Ucrânia de ser "controlada de fora": "A Ucrânia tornou-se uma grande colónia de fantoches", garantiu. Antes de acrescentar que os ucranianos "desperdiçaram não só o que lhes demos durante a União Soviética, mas até tudo o que herdaram do império russo. Até o trabalho criado por Catarina, a Grande".

E nem Lenine escapou às suas críticas, com Putin a considerar o líder da revolução bolchevique de 1917 que derrubou o czar Nicolau II de ser o "autor e criador" da Ucrânia. E deixou a ameaça a Kiev, garantindo que a Rússia está pronta a mostrar-lhe "o que é a verdadeira descomunização".

O discurso de Putin foi logo criticado pela comunidade internacional. O primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, denunciou a violação flagrante da soberania" da Ucrânia. O presidente francês, Emmanuel Macron, e o chanceler alemão, Olaf Scholz, mostraram-se desiludidos com esta decisão. E tanto os EUA como a União Europeia já prometeram mais sanções.

Desde 2019 que a Rússia tem emitido um grande número de passaportes para os habitantes destas regiões - cerca de 3,8 milhões de pessoas, segundo os números disponíveis. Donetsk e Lugansk, de populações maioritariamente russófonas, declararam-se independentes em 2014 após a anexação da Crimeia pela Rússia. Na semana passada os líderes de ambas as regiões anunciaram a transferência de civis para a Rússia. Parecendo confirmar os receios dos analistas - que viam este reconhecimento da independência dos separatistas como pretexto para Putin (que tem 190 mil soldados na fronteira) colocar tropas naquelas regiões com o argumento de proteger os seus cidadãos - ao final da noite, o presidente russo ordenou a mobilização do Exército russo para "manutenção da paz" nos territórios separatistas.

Em oito anos, a guerra entre Kiev e os separatistas apoiados por Moscovo deixou mais de 14 mil mortos. A violência dos confrontos, no entanto, diminuiu quando os acordos de Minsk foram assinados em 2015 entre a Rússia e a Ucrânia, mediados pela França e pela Alemanha. Mas o acordo político que permitiria o fim do conflito está num impasse. Cada lado acusa o outro de bloquear o processo de paz. O reconhecimento russo dos separatistas significa o fim desse processo, já que os acordos de Minsk visam devolver essas áreas à soberania da Ucrânia.

O cenário tem um precedente: em 2008, o Kremlin reconheceu a independência de duas "repúblicas" separatistas pró-Rússia, Abcásia e Ossétia do Sul, após uma guerra-relâmpago contra a Geórgia, ex-república soviética que, como a Ucrânia, aspira aderir à NATO. Mas, exceto Nicarágua, Venezuela, Síria e Nauru, mais nenhum país lhe seguiu o exemplo, reconhecendo-as.

As declarações do chefe de Estado vêm depois de a Rússia anunciar nesta segunda-feira que as suas forças de segurança eliminaram dois grupos de sabotadores ucranianos que haviam penetrado no seu território e acusar a Ucrânia de ter bombardeado um posto de fronteira, declarações que nega. No Twitter, o ministro dos Negócios Estrangeiros ucraniano, Dmytro Kuleba, garantiu:
"Não, a Ucrânia NÃO:
- Atacou Donetsk e Lugansk
- Enviou sabotadores para a fronteira russa
- Bombardeou território russo
- Bombardeou postos fronteiriços russos
- Realizou atos de sabotagem
A Ucrânia não planeia tais ações
Rússia, para com a produção de notícias falsas agora!"

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Esta subida de tom, a que se juntam notícias de um civil morto num bombardeamento separatista na região de Donetsk e de duas baixas militares também na região de Donetsk, torna cada vez menos provável um encontro entre Putin e Biden. Durante a manhã, o presidente dos EUA aceitara "em princípio", fazer a tal cimeira, negociada pelo presidente francês Emmanuel Macron, da não invasão da Ucrânia pela Rússia.

Ainda antes de Putin confirmar o reconhecimento da independência de Donetsk e Lugansk, o presidente ucraniano, Volodimir Zelensky, já pedira uma reunião "imediata" do Conselho de Segurança da ONU. O pedido tem como base os memorandos de Budapeste, acordos assinados pela Rússia em 1994 que garantem a integridade e a segurança de três ex-repúblicas soviéticas, uma das quais a Ucrânia, em troca do abandono das armas nucleares herdadas da União Soviética.

helena.r.tecedeiro@dn.pt

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