De Bissau a Londres, com escala na outra final de Viena

Antigo central do benfica jogou de águia ao peito durante uma década e foi titular a lateral esquerdo frente ao Milan. Acompanhou os filhos até Inglaterra, onde espera abrir negócios
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De Bissau a Londres. É este o percurso de vida de Samuel, antigo central que vestiu a camisola do Benfica durante uma década. Na capital guineense nasceu, cresceu e começou a dar os primeiros toques na bola. Para a inglesa emigrou há cinco anos, mais de uma década depois de se ter retirado dos relvados, com o intuito de acompanhar a filha, que foi para lá estudar, e o filho Domingos Quina, que seguiu as pisadas do pai e enveredou pelo futebol - joga no West Ham e é internacional português pelas seleções jovens. Mas, desde que descolou da Guiné até aterrar em Inglaterra, muitas coisas aconteceram na vida e na carreira deste antigo defesa, que brilhou nos relvados nacionais nas décadas de 1980 e 1990.

Por intermédio do antigo jogador benfiquista Cavungi, fez a transição do Benfica de Bissau para o Benfica lisboeta, onde começou pelas camadas jovens, até chamar a atenção do treinador encarnado da época, Sven-Göran Eriksson. Pela mão do sueco, estreou-se na equipa principal a 31 de dezembro de 1983, entrando para o lugar do lesionado António Bastos Lopes numa receção vitoriosa ao Desportivo de Chaves (4-0), para a Taça de Portugal. "Era um Benfica diferente", recordou ao DN. "Os jogadores lutavam pela camisola. Quando cheguei à equipa principal, havia um balneário para os mais novos e outro para os mais velhos. Havia muito respeito pelos mais velhos, que até me pediam para ir comprar tabaco", acrescentou.

Entretanto, já com o húngaro Pál Csernai no comando técnico, Samuel beneficiou de uma lesão de Humberto Coelho para agarrar um lugar no onze, numa afirmação que durou até à chegada de concorrentes de peso como Mozer, Aldair ou Ricardo Gomes. Contudo, o regresso de Eriksson à Luz, em 1989, devolveu-lhe a felicidade.

Na final da Taça dos Campeões Europeus de 1990, o sueco não pôde contar com o castigado Veloso e decidiu apostar em Samuel para o lado esquerdo da defesa, embora tivesse jogadores enraizados naquela posição para enfrentar o Milan de Gullit, Rijkaard e Van Basten. "Não esperava jogar no lado esquerdo nem num jogo normal, quanto mais numa final. Não tinha experiência a jogar nessa posição e o meu pé esquerdo não funcionava", conta, lembrando uma grande campanha até uma final perdida (0-1) no Estádio Prater, em Viena, onde três anos antes o FC Porto se tinha sagrado campeão europeu.

"Tínhamos uma equipa em que ninguém apostava para chegar à final. Nas meias-finais, tínhamos perdido em casa do Marselha, e eles pensavam que nos venceriam facilmente na Luz", afirmou, recordando a célebre mão de Vata ocorrida nesse encontro, e que valeu o passaporte para a final. "No calor do jogo, ninguém percebeu. E o Vata negava. Ele nunca disse que tinha marcado com a mão, embora as imagens televisivas o tenham comprovado. O que é certo é que esse golo surgiu já na fase final do jogo, e, apesar de o Marselha ter caído em cima de nós, conseguimos segurar o resultado. Não deu para eles terem tempo de reação", disse, puxando a cassete atrás.

Por ter tão boas memórias, não esquece Eriksson. "Quando vejo Mourinho, comparo-o muito com ele. Eriksson sabia ler o jogo, tinha visão e lidava muito bem com as pessoas. Vejo muito dele em Mourinho. Gosto de fazer esta comparação. Foi o treinador que mais admirei", confessou, lamentando não ter seguido um conselho do técnico nórdico: "O Eriksson queria que eu fizesse musculação, para desenvolver a massa muscular, mas sempre descurei isso. Eu pensava que isso me tornaria menos rápido, o que acabou por me prejudicar, pois tive lesões que não teria se tivesse seguido o conselho."

E até quando o nórdico o enviou para o Boavista, para ganhar rodagem, deu resultado. "Foi uma experiência muito boa, que me levou à seleção nacional. Foi a melhor época [1991-92] da minha carreira. Fizemos uma campanha muito boa e conquistámos a Taça de Portugal. O Boavista tinha uma grande equipa", atirou, em alusão a nomes como João Pinto ou Ricky.

Quer abrir restaurante e escola

Central baixo, de apenas 1,76 m, Samuel "não tinha altura nem corpo" e sentiu grandes dificuldades para enfrentar avançados bem mais poderosos, que tentava travar através da velocidade. Hoje, continua em "correria", mas noutras andanças. "Vivo em Londres há cinco anos. Vim acompanhar os meus filhos e trabalho no ramo da restauração. O meu dia-a-dia é uma correria constante no trânsito de Londres em viagens entre casa, trabalho e ginásio", contou o antigo central, que espera abrir em breve um restaurante e uma escola de futebol na capital inglesa.

O gosto pela nova vida foi ganho ainda em Portugal, quando teve um café em Alfragide. "Quando deixei de jogar, abri um café e gostei do ramo. Gosto de lidar com o público", atirou, desabafando que trabalhar na restauração "é mais fácil" do que ser futebolista. "Há menos responsabilidade, especialmente no Benfica, onde és obrigado a ganhar todos os jogos. As pessoas não têm noção do que é", rematou, com saudades do cheio da relva, do balneário e do terceiro anel: "Tenho saudades daquele público, daquele estádio [Luz] e daquela convivência no balneário. Sinto falta disso."

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