De Angola a Portugal. As memórias de quem usou a ponte área de 1975
Eram horas e horas de espera na placa do aeroporto de Luanda, sem comer, com pouca água e três ou quatro malas de mão, por família. Embarcámos num voo da American Airlines e chegámos a Portugal a 22 de outubro de 1975. Quando se abriu a porta do avião, já noite, o frio, meu Deus, o frio, nunca tal havia sentido." Estas são as memórias de José van der Kellen, na altura aluno do 2º ano de liceu. Tantos anos depois, são muito vivas as impressões que guarda desses meses de perplexidade e angústia. O frio, o cheiro, a fome.
Filomena Barata chegou a Lisboa no próprio dia em que era proclamada a independência de Angola, 11 de novembro de 1975. Tinha 17 anos, vinha de Luanda, onde estudava com a irmã, e estivera um mês sem ter quaisquer notícias dos pais, que viviam em Malange. Por ironia do destino, chegaram todos no mesmo dia, apesar de os pais terem embarcado noutro voo, em Nova Lisboa, depois de uma terrível viagem por terra, integrados numa coluna militar.
Até ao final da vida, António, antigo piloto da Força Aérea, recordou o terror que sentia quando, aos 19 anos, tinha de aterrar em Luanda, com as luzes e o ruído reduzidos ao mínimo, de modo a evitar a atenção dos atiradores, de várias fações, que cercavam a pista do aeroporto. Filomena, José, António e tantos como eles, entre nós, estes anos todos. Como as personagens do romance de Dulce Maria Cardoso, O Retorno.
De maio a novembro de 1975, milhares de pessoas chegaram ao aeroporto da Portela com pouco mais do que a roupa que traziam no corpo. Vinham evacuados de Angola, num dos 905 voos operados por companhias nacionais e estrangeiras, para além dos da Força Aérea Portuguesa, fugidos à guerra civil que se instalara no país ainda sob a administração portuguesa. Outros, menos mas ainda assim alguns milhares, chegaram de barco.
Muitos viriam ainda de Moçambique e da Guiné-Bissau, mas o contingente maior (cerca de 300 mil), transportado em condições mais dramáticas, era de Angola que chegava. Gradualmente, demasiado gradualmente para quem, por vezes, tinha de fazer centenas de quilómetros em estradas rudimentares ou em picadas, debaixo de fogo e ameaças muito reais de morte, violação e saque. Perante a dimensão da catástrofe humanitária, Lisboa parece indiferente, ocupada com o "pingue-pongue" político entre homens como Pinheiro de Azevedo, Rosa Coutinho, Vasco Gonçalves, Mário Soares, entre outros, e o próprio Presidente da República, general Costa Gomes.
José van der Kellen estudava em Luanda (no Colégio Universal) enquanto os pais (ele, funcionário público do Instituto de Algodão de Angola, ela doméstica) e os irmãos mais novos estavam no Dondo,180 quilómetros a Norte. Nos dias a seguir ao 25 de Abril, o ambiente agravou-se radicalmente: "Começaram os tiroteios em Luanda; os problemas com os taxistas brancos; a rivalidade política principalmente entre o MPLA e a Frente Nacional de Libertação de Angola (a FNLA), que depressa se transferiu para a esfera militar, os zairenses que vieram com a FNLA, a UNITA inicialmente passiva e à espera da sua oportunidade, os militares portugueses em modo PREC, com pressa de voltar para a metrópole, e os portugueses atónitos."
Do Dondo, onde estava a família, chegavam ecos de uma insegurança crescente, que levou os pais e irmãos a juntarem-se a ele na capital. Mas a viagem revelar-se-ia um autêntico pesadelo: "Havia sistemáticos controlos militares efetuados pelos movimentos de libertação, muitos eram jovens adolescentes armados e de metralhadoras em punho. Os meus pais foram parados, encostados à berma da estrada, revistados. O que havia para dar era tabaco, andava-se com alguns volumes de cigarros nos carros, mas naquele dia parecia não resultar."
Valia, por vezes, a força de um laço pessoal: "De repente, saído do capim, do mato, à beira da estrada e onde estavam os meus pais, apareceu um adolescente de arma na mão, olhou para a minha mãe e diz "oh! É mãe do Zé, são os pais do Zé", perguntou imenso por mim e deu ordem para os deixarem seguir, parece que tinha sido meu colega de escola. Ainda hoje não faço a mais pequena ideia de quem teria sido aquela alma caridosa que tão boas recordações tinha de mim, mas estou-lhe eternamente grato."
Alguns anos mais velha do que José, Filomena recorda também o ambiente temível da capital angolana nos meses que antecederam a partida: "A guerra civil instalara-se. Todas as noites ouvíamos tiroteios, rebentamentos de morteiros, histórias de pessoas que desapareciam ou de carros que eram incendiados com os ocupantes lá dentro." O mais angustiante, porém, foi o mês inteiro em que Filomena e a irmã telefonavam para casa e ninguém atendia. "Finalmente, o meu pai conseguiu contactar-nos através de um radioamador. Disse-nos que estavam em Nova Lisboa (atual Huambo) e que deveríamos embarcar para Portugal logo que pudéssemos."
Quer no caso de Filomena quer no de José, foi a violência reinante que acabou por decidir as famílias a partir. José recorda: "Esperámos durante uns dias no quartel dos paraquedistas no Futungo de Belas. Lembro-me de ir à Baixa de Luanda tentar comprar sapatos, os meus eram horríveis, não podia ir assim para a metrópole, pensei, mas não deu. Havia dinheiro, não havia era sapatos nem sapatarias."
Em outubro, "numa madrugada de muito calor", recorda, "chegaram os militares portugueses à nossa caserna e disseram-nos que tínhamos de pegar nas trouxas e zarpar, tinha de ser rápido porque o avião estava à nossa espera. Foi um corrupio, ainda escuro e já estávamos na placa do aeroporto, como se estivéssemos à espera do machimbombo (autocarro); as outras bagagens iriam por barco. Trouxemos as fotografias (a minha mãe foi uma valente). Além da roupa do corpo pouco mais havia. Seguiu-se uma espera interminável até que chegou o avião".
Filomena, talvez por integrar os últimos grupos, não esperou muito tempo para embarcar. Consciente de que a memória teve a arte de "apagar" aspetos mais dolorosos, recorda um voo Luanda-Lisboa cheio de passageiros mais dormentes do que inquietos. "Era como se estivéssemos anestesiados. Na verdade, a vida num ambiente de guerra desperta a nossa capacidade de lidar com tal absurdo. Éramos capazes de jogar às cartas enquanto ali bem perto decorria um tiroteio. Estávamos assim, naquele voo, apesar de desconhecermos totalmente o que nos esperava."
A ponte aérea foi uma prova de fogo para o novo regime em Portugal, mas sobretudo para quem estava no terreno. As tripulações da TAP, que asseguraram a maior parte dos voos, chegaram a somar 26 horas consecutivas de trabalho, para ligar Angola e Moçambique a Portugal. O caos e a destruição aproximavam-se da pista do aeroporto em Luanda, enquanto milhares de pessoas (incluindo muitas crianças) se acumulavam, com o que lhes restava de uma vida inteira, na aerogare. Viveram-se momentos de grande tensão para conseguir fechar as portas. Improvisava-se espaço até ao limite do possível, com os aviões a descolar no máximo da carga. Mas a 11 de novembro de 1975, quando a bandeira angolana substituiu a portuguesa no mastro, todos os que se tinham proposto vir estavam em território nacional.
Com a expansão do transporte aéreo, o conceito de ponte aérea foi adotado por muitas companhias, com objetivos menos aflitivos. Em 2018, a ponte aérea mais movimentada do mundo ligava a ilha de Seju, na Coreia do Sul, à capital do país, Seul, graças a uma média diária de 178 voos. Nas primeiras dez classificadas dessa lista surgiam também as ligações entre Los Angeles e São Francisco, Bombaim e Nova Deli e, em quinto lugar, Rio de Janeiro-São Paulo. Criada em 1959, esta foi a primeira ponte aérea comercial do mundo, graças aos esforços conjugados de três companhias concorrentes: Vasp, Varig e Cruzeiro do Sul. Inaugurada a 5 de julho de 1959, a rota continua a ser imprescindível para a economia brasileira, sendo atualmente operada pela Latam, Gol e Azul.
O conceito de ponte aérea surgiu em Berlim no pós-guerra, quando a derrotada Alemanha foi dividida em quatro regiões ocupadas pelas forças aliadas: a norte-americana, a francesa, a britânica e a soviética. Mas em clima de paz as quatro potências vitoriosas de 1945 não tardaram a enfrentar-se. Aspirando ao controlo total sobre a Alemanha, a União Soviética desencadeou, a 24 de junho de 1948, o bloqueio de Berlim Ocidental. Nesse dia, foram paralisados todos os serviços ferroviários e o tráfego de barcaças na cidade. No dia seguinte, os soviéticos suspenderam o fornecimento de alimentos à população civil nos setores não soviéticos e também cortaram a eletricidade, usando o seu controlo sobre as centrais geradoras que estavam na sua zona.
O abastecimento alimentício e energético, que vivia ainda sob os constrangimentos dos anos da guerra, estava prestes a colapsar. Os berlinenses estavam, uma vez mais, à beira da fome e da escassez de medicamentos. Se a situação se prolongasse, entrariam no outono em plena crise energética. Ante este cenário, Lucius D. Clay, governador militar da zona americana, decidiu dar início a uma ponte aérea (a Berlin Airlift). A 26 de junho descolaram de Frankfurt e de Wiesbaden os primeiros aviões de abastecimento com destino a Berlim. Aguardavam-nos cerca de dois milhões de almas, em pânico. Numa operação logística sem par na história da Europa, os Rosinenbomber aterravam de minuto em minuto, sendo descarregados rapidamente, para retornar às bases. Assim, cinco mil toneladas de bens de primeira necessidade foram levados diariamente para a parte bloqueada da cidade.
Apesar de os soviéticos terem posto fim ao bloqueio a 12 de maio de 1949, os aliados mantiveram a ponte aérea por mais um ano, tornando-se não só a primeira do seu género, como uma das maiores operações humanitárias de sempre. Para aquelas populações demasiado familiarizadas com os horrores da guerra e dos bombardeamentos, os milhares de voos que lhes traziam comida e medicamentos constituíam uma novidade extraordinária. Do céu, assim de repente, também chegava a salvação.