David Erlich: "Tem de existir um simplex na Educação"

David Erlich tem 33 anos e nos seus primeiros três anos como docente foi o professor de Filosofia mais novo do ensino público em Portugal, título que perdeu no ano letivo que agora se inicia. Diz que a experiência que ganhou em colónias de férias e ATL o tornou um professor melhor e que lidar com crianças e jovens deveria ser ensinada a quem ensina. Defende que a precariedade e a burocracia são as principais fontes de frustração de um setor que está a rejuvenescer-se, embora o ensino do futuro ainda seja uma miragem longínqua em muitos estabelecimentos de ensino.
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Este será o seu quarto ano como professor, o que se significa que chegou ao ensino numa altura em que a imagem quase sagrada do professor na sociedade já existe. Isso é bom ou é mau?
Uma certa ideia do professor como uma figura cuja autoridade é incontestada e incontestável é uma figura que, pelo menos nas democracias ocidentais, não voltará e ainda bem. Nós vivemos numa espécie de crise de identidade, já sabemos o que o professor já não é, mas estamos com alguma dificuldade no nosso país de descobrir o que o professor é. E o que o professor é, e o que o professor é nas escolas mais inovadoras e nos sistemas mais inovadores, é um professor mediador, é um professor com uma autoridade reconhecida, mas que é uma autoridade negociada, é um professor que sabe lecionar uma aula e sabe ter uma postura mais rigorosa quando é necessário, mas também sabe compreender, sabe fazer mediação, sabe chegar aos seus estudantes pela via do afeto, pela via do carisma.

E esse professor é o professor do presente ou deve ser o professor do futuro ou ambos?
O que está a acontecer agora e cabe-nos a todos refletir sobre isso, é que a educação do futuro em algumas escolas já é presente e, portanto, verdadeiramente acontece que vivemos em dois tempos. O que acontece hoje em dia, pelo menos no nosso país, é que as escolas que mais inovam tendem a ser escolas do setor privado e particular porque têm liberdade para tal. Ora, isto deve levar-nos a refletir sobre a autonomia das escolas no setor público, porque só há inovação e só há futuro agora se cada escola, cada diretor de escola, cada conselho pedagógico, puder levar a cabo o seu projeto educativo sem ter de deparar-se com mil e uma burocracias e com autorizações de despesas que tardam em chegar. E, portanto, o que acontece agora é que o professor do futuro em algumas escolas é um professor longínquo do futuro, um futuro que tarda em chegar, e em outras é o que já está a acontecer no dia a dia.

E que tipo de professor é que o David é ou tenta ser?
Tenho dificuldade com esse tipo de questões. Eu lembro-me sempre daquele verso inicial da música do Paulo de Carvalho "quis saber quem sou e o que faço aqui". No fundo, posso tentar fazer um retrato objetivo da minha prática. Grande parte da minha prática letiva assenta em equipas, há uma parte da aula em que os alunos estão sentados de frente para o quadro, mas depois há uma parte substancial de todas as aulas em que os estudantes têm a sua equipa que é estável ao longo do período escolar. Outro aspeto tem a ver com um pedagogo que estudei que é o Carl Rogers, não tanto no seu aspeto não diretivo, mas no seu aspeto da consideração positiva incondicional, que é a ideia do amor, a ideia do afeto, a ideia de achar que se o jovem responde mal uma manhã, eu tenho direito a sentir-me triste, eu devo intervir, mas não desde a zanga, não desde a punição, não desde a vingança. Eu diria que cooperação, pessoa e empatia são o triângulo no qual insiste na minha prática letiva. E depois há algumas questões têm a ver não tanto com a teoria pedagógica, mas com quem eu sou. Procuro ter, embora grande parte das vezes com insucesso, alguma piada, pelo menos julgo que que tenho algum sentido de humor e isso transparece nas aulas. O exercício que eu faço a mim próprio é se os miúdos não tivessem falta, continuariam a vir? E gosto de achar que sim.

E qual é a reação dos seus alunos ao seu método de ensino e também ao facto de ser bastante novo?
É uma reação que, nos meus primeiros tempos de carreira, me deixava mais feliz por uma questão da insegurança própria do professor em início de carreira e também pelo pequeno ego que todos nós temos, e que agora me deixa feliz, mas ao mesmo tempo triste, porque é uma reação de grande calor, de grande proximidade, de grande recetividade, e como que lidando com algo que os miúdos consideram único, mas que não é. E eu digo-lhes logo "olhem, eu não inventei a roda" e faço questão de lhes explicar no início o tipo de trabalho que vamos desenvolver, que é diferente do que estão habituados, mas que há determinados referenciais e que eu não inventei nada. O meu sonho é que um dia eu possa distribuir os alunos pelas equipas ou propor um trabalho mais inovador e esse ser apenas mais um trabalho apelativo, mais um trabalho atrativo, que eles fazem no decorrer de vários.

E em relação à idade?
A surpresa existe, mas mais uma vez, cabe-nos refletir sobre o setor público, e acho que estamos a viver uma época de transição. E cabe-nos refletir sobre o setor público porquê? Porque o colégio onde estou eu sou um professor, mas não sou, de longe, o mais jovem, e na escola profissional particular onde estava anteriormente também não era o mais jovem. Portanto, se nós entramos em escolas do setor privado, um professor de 30 e poucos anos é um professor jovem, mas não é uma raridade. Na escola pública, ainda e felizmente cada vez menos, é. Não digo isto para dizer que o privado é o melhor que o público ou vice versa, não quero entrar nesse debate ideológico.

E como é que os seus colegas professores mais velhos olham para si? Olham com desconfiança ou com alegria por verem a profissão a renovar-se?
Tenho sentido essa alegria, e tenho sentido essa recetividade, esse ânimo, de ver o rejuvenescimento a acontecer, e a troca de ideias e a troca de experiências. Curiosamente, o ano passado foi a minha primeira colocação em horário completo, logo a partir de dia 1 de setembro, e também foi o ano de reforma de uma colega, e foi muito bela essa troca de ideias e perceber que na mesma escola está um professor no início e está outro professor a reformar-se. Nunca senti desconfiança ou descrédito, pelo contrário, sempre senti muito afeto nas três escolas por onde passei.

Ser professor em Portugal, neste momento, tem mais de frustração ou de felicidade e sentimento de realização?
Diria que, como adepto de uma filosofia que é o estoicismo, uma parte sobre sentirmo-nos ou não frustrados, uma parte importante não depende das circunstâncias, mas depende de nós próprios. E, portanto, se a carreira docente é mais fonte de frustração ou mais fonte de realização é uma pergunta muito pessoal. Para mim, é definitivamente mais fonte de realização e ânimo do que de frustração.

E em termos gerais?
Em termos de remuneração, que é uma questão de que muitas vezes se fala, a verdade é que - tirando determinadas áreas em que o mercado privado oferece um ordenado muito melhor do que o ordenado docente - o ordenado do docente não compara mal com o ordenado de um técnico superior ou com o ordenado de uma profissão qualificada no setor privado. A meu ver, portanto, a fonte de frustração não é tanto essa e uma delas é a precariedade. E uma precariedade sujeita a um concurso que, como apenas tem em conta a graduação profissional, isto é, a antiguidade é uma quase bíblia, não apenas é uma situação de precariedade de muitos docentes, mas é uma precariedade cega ao mérito e ao trabalho do docente. Outro será o facto de, pela precariedade, haver pouca evolução nos escalões e, também pela precariedade, muitas vezes aquilo que se ganha vai para o gasto. Há muitos professores que gastam um quarto, um terço, do seu vencimento para poder ir trabalhar e, obviamente, o vencimento torna-se muito mais magro, não apenas para a deslocação, há professores que já precisam de ter uma segunda casa para poderem ficar colocados. Isto é muito comum com professores do norte, porque há muito mais colocações no centro e sul do país. A meu ver, esse seria o setor em que valeria a pena discutir medidas concretas. Por exemplo, os professores que consigam comprovar que estão deslocados estarem isentos do pagamento portagens ou, ao final de cada mês, poderem pedir a devolução das portagens que gastaram no trajeto para escolas, acho que seria uma medida simples.

Também é um crítico da burocracia.
É outra fonte de frustração, seja a burocracia imposta de cima para baixo, seja a cultura burocrática que continua a vigorar em muitas escolas, faz com que o professor muitas vezes seja um assistente administrativo de si próprio. E isso torna difícil a profissão docente, porque quando há mil e uma grelhas e tabelinhas para preencher e plataformas para atualizar, torna-se difícil ter tempo mental para aquilo que é o principal, que é a vida dos estudantes, que é a preparação dos contextos de aprendizagem, o desenho de atividades, a pesquisa de novos modos e de novos conteúdos.

Já o ouvi usar a expressão de Simplex para os professores.
Mantenho essa ideia. Tem de existir um Simplex na Educação e tem de ser um Simplex por duas vias. Por um lado, o ministério rever todos os papéis, todos os formulários, tudo aquilo que exige à escola, e ver o que é que pode ser anulado, o que pode ser simplificado, o que pode ser digitalizado. E por outro lado, o ministério encorajar, e cada escola fazer este trabalho consigo própria e ver que aspetos pode eliminar na sua burocracia, porque há uma burocratite aguda no setor da Educação. Que eu compreendo, é feita com boa intenção, é com a intenção de monitorizar, é com a intenção de poder mostrar o trabalho feito, é com uma intenção de rigor, mas às vezes com menos papéis há mais rigor.

Essa questão da precariedade e de como é difícil tornar-se efetivo também cria outro problema: ou se tem um espírito de itinerância ou acaba por não se criar uma ligação afetiva ao projeto porque já se sabe que no ano seguinte se vai para outro lado.
Esse é um aspeto difícil. Eu estive agora um ano na Escola Secundária Dom Manuel Martins e tudo apontava para a minha renovação, mas como um dos horários, precisamente aquele que porventura me poderia ser atribuído foi para um colega efetivo através de mobilidade interna, eu acabei por não ser reconduzido e fui colocado agora, curiosamente, na escola onde estagiei, a Escola Secundária de Casquilhos, para a qual também vou com toda alegria. A precariedade docente é um estímulo a que o docente não crie verdadeiramente vínculo, mas não há pedagogia sem vínculo e, portanto, a precariedade acaba por ser um catalisador de que muitos docentes, para se proteger, possam, eventualmente, não criar tanto vínculo com as comunidades em que trabalham. Embora a minha experiência seja mais o oposto, a minha experiência e de colegas que vejo é de que, mesmo apesar da precariedade, apesar de não saberem que vão continuar, muitos professores criam essa ligação, dão tudo o que têm, criam relação, dão e recebem a afetividade que a educação envolve, mas depois, no final do ano, não têm a garantia de ficar. Este ano, o ministério fez uma pequena revolução, e uma boa evolução, que foi dizer que qualquer docente que a 31 de agosto tenha contrato com a escola, pode ver o seu contrato renovado.

Faz parte do grupo de 1,1% de professores com menos 35 anos no ensino público em Portugal e durante três anos letivos foi o professor de Filosofia mais novo no ensino público em Portugal. Como é que sente por fazer parte de um grupo tão restrito?
Sinto-me encorajado e grato. Sinto-me encorajado por perceber que estamos numa época de mudança e que, precisamente pela falta de professores, o poder público está consciente da necessidade de rejuvenescer a classe docente, e está a acontecer. Esta é a minha quarta colocação pública, que se iniciou a 1 de setembro, e este ano é o primeiro ano em que não sou o professor mais jovem de Filosofia no setor público em contratação inicial, e ainda bem. Isto é prova de que algo está a mudar e sinto-me animado com a perspetiva de que o país compreenda a necessidade de rejuvenescer a classe docente, e no fundo, de termos um corpo docente na escola pública que seja representativo da sociedade de que temos.

Além do tempo de transição que estamos a viver em que há e haverá nos próximos anos muitos professores a reformarem-se, abrindo assim vagas, como é que se pode atrair mais jovens para esta carreira?
A diminuição da precariedade é definitivamente uma delas, é uma das coisas que se pode e se tem de fazer já. Devemos também refletir sobre as condições de remuneração, não apenas da classe docente, mas também de outras classes profissionais. Mas, sobretudo, eu diria mudar a escola. Porque, de forma completamente subjetiva, observacional da minha experiência, sem nenhum grau de cientificidade, parece-me que o jovem que quer mudar o mundo, no nosso país, mais rapidamente vai para empreendedor, mais rapidamente vai para educador social, mais rapidamente vai para ativista numa ONG, mais rapidamente vai para assistente social, do que vai para professor. Para captar o jovem ou a jovem idealista realisticamente utópico, que quer no dia a dia transformar a sociedade num lugar melhor, nós precisamos transformar as nossas escolas num espaço de criatividade, de diálogo e de transformação, e não apenas naquilo que muitas vezes a escola se torna, um espaço acrítico, de mera transmissão do currículo.

Mas como é que se cria uma escola mais atrativa? Porque há coisas que, nos moldes atuais se tem de cumprir, como ter um programa sabendo que no final do ano os alunos têm um exame sobre esse programa.
Há um pressuposto cultural na docência em Portugal que tem de ser desconstruído: a ideia de que aprender o programa todo equivale a que todo o programa seja dito pelo docente. Isso é uma falácia, não é o mesmo. Temos de desconstruir a dicotomia de que ou investimos em processos pedagógicos ainda ditos inovadores, que assentam na cooperação e na descoberta, e não cumprimos o programa, ou então cumprimos o programa e somos apenas falantes, somos professores falantes. Não há essa dicotomia. Existe, por vezes, uma tensão, porque metodologias participativas e cooperativas por vezes exigem mais tempo para o mesmo conteúdo do que simplesmente dar uma aula. Mas é possível! Temos de transformar a ideia do que é aprender e do que é avaliar.

O que acha dos exames?
Diria que a avaliação tem várias funções. Uma das funções da avaliação, a principal, é fazer aprender. E outra é certificar e ainda outra é medir. O exame nacional, enquanto prova de ingresso para a faculdade, é um instrumento de igualdade, é um instrumento democrático e parece-me uma prática que devemos manter. A contabilização da média interna do secundário para a candidatura à universidade é que me parece que pode introduzir uma excessiva modelagem da aula àquilo que supostamente dá resultados no exame. Não quero estar aqui a lecionar uma aula sobre avaliação pedagógica, mas, se calhar, muitas das pessoas nas escolas precisariam de reler a literatura pedagógica sobre avaliação, porque há outros modos de avaliar que não o teste. E, portanto, o problema não é tanto o exame nacional, é cada professor na sua sala de aula repetir o seu examezinho e ficar muito contente por dar as suas notinhas e achar que as notinhas são justas do modo que são e uns alunos sabem e outros não, e assim é que é. Há outros modos de avaliar e há outros modos de fazer.

O professor Nuno Crato disse recentemente numa entrevista que é importante modernizar a formação de professores. Concorda? Como pode e deve ser feita esta modernização?
Eu infelizmente não li essa entrevista, mas acho surpreendente que alguém que introduziu exames nacionais no final do quarto ano de escolaridade nos fale de modernização. Precisaria de aprofundar o meu conhecimento acerca do pensamento do nosso ex-ministro para perceber se falamos do mesmo quando falamos de modernização.

Como é que o David entende que deverá ser a formação de professores?
Modernizar a formação docente, a meu ver, significa dar mais ênfase na formação docente à componente da relação, à componente prática e perceber que coisas tão simples como saber falar para um grupo de vinte jovens, saber mediar um conflito entre jovens, saber com um olhar apenas ou com poucas palavras, comunicar com um jovem, saber dar feedback formativo, claro, objetivo a favor das aprendizagens, saber propiciar um ambiente de aprendizagem empático, digno e motivacional. Tudo isso se aprende, mas, infelizmente, as universidades não estão a fazer o suficiente, e a mim parece-me que as universidades deviam apostar mais nessa dimensão prática, por exemplo, apostando em formação e estágios práticos de animação sociocultural prévias à didática da disciplina. Eu, por exemplo, sinto - e todos os colegas que passaram pela mesma experiência sentem o mesmo - que ter trabalhado em campos de férias, ter trabalhado em ATL, me deu uma enorme bagagem para depois estar na sala de aula. Colegas que foram treinadores desportivos, colegas que foram escoteiros, sentem exatamente o mesmo. E, portanto, porque não fazer da educação não formal uma dimensão dos currículos da formação docente? É isso que eu entendo por modernização. Talvez não seja o mesmo que o Nuno Crato entende.

Apesar de todas as suas falhas, os seus problemas, o ensino público em Portugal é um ensino de qualidade?
Sim, é. A escola pública no nosso país, a universalidade do seu acesso, a diminuição das taxas de analfabetismo, a diminuição progressiva das taxas de abandono escolar, o alargamento da escolaridade obrigatória são grandes vitórias da nossa democracia e, portanto, as críticas e os caminhos de melhoria que aponto, e que um conjunto de vozes apontam, para tornar a escola mais amiga da criatividade, da expressividade, da personalidade, são para melhorar aquilo que temos construído nas últimas décadas, que deve ser apreciado e valorizado por todos nós.

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