Das golas aos contratos públicos. Até onde podem ir as demissões?

A Proteção Civil tem estado debaixo dos holofotes depois da polémica sobre a atribuição de <em>kits</em> de emergência inflamáveis, no programa "Aldeias Seguras". Mas não só. O último caso mexe com os familiares do secretário de Estado e a lei até prevê mesmo a demissão do governante.
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Não têm sido dias serenos para a Secretaria da Proteção Civil. Depois de noticiado que as setenta mil golas antifumo distribuídas no âmbito do programa "Aldeia Segura" são de material inflamável, é divulgado que a empresa do filho do próprio secretário de Estado da Proteção Civil, José Artur Neves, celebrou contratos com o Estado quando o pai já tinha assumido funções governativas. A primeira notícia culminou com a demissão do adjunto Francisco Ferreira. E, de acordo com a lei, também a segunda deveria ser razão de demissão do secretário de Estado. A secretaria é agora uma bomba-relógio.

Até porque esta já não é a primeira vez este ano que o gabinete de José Artur Neves é centro de polémica. Ainda em maio, uma delas terminou também numa demissão, a do chefe de gabinete. Adelino Mendes foi constituído como um dos 73 arguidos de uma investigação, suspeito de fraude de milhões de euros na obtenção de fundos da União Europeia.

As golas que ditaram o afastamento do adjunto

Tinha tudo para ser uma boa ideia. O programa "Aldeia Segura - Pessoas Seguras" foi implementado em 2018 em vários municípios, resultante de um protocolo assinado entre a Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil (ANEPC), a Associação Nacional de Municípios Portugueses (ANMP) e a Associação Nacional de Freguesias (Anafre). O objetivo passa por destacar oficiais de segurança local para prestar apoio às populações, em caso de incêndio, encaminhadas para locais de abrigo. Atualmente, estão envolvidos neste âmbito 1507 oficiais.

Na sequência deste programa, foram distribuídas 70 mil golas desenhadas para evitar inalações de fumos. Mas o que se viria a descobrir é que estas golas são, na verdade, fabricadas em poliéster, material inflamável e sem tratamento anticarbonização. O alerta foi dado por dois oficiais de segurança do distrito de Castelo Branco, que diziam que estas golas não só aqueciam em demasia como cheiravam "a cola" se expostos ao fumo.

Em declarações ao Jornal de Notícias, um representante da Foxtrot Aventura, empresa a quem a ANEPC comprou os kits de emergência no ano passado disse que a perceção que teve da encomenda era de que se destinava a "merchandising" e nada mais. De acordo com Ricardo Peixoto, nada foi dito sobre a possibilidade de virem a ser utilizados "em cenários que envolvem fogo".

O que só prova que "o programa é uma falácia", acrescentou o presidente da Associação de Proteção e Socorro (Aprosoc), João Paulo Saraiva. "Nos testes que fizeram, estiveram sempre a GNR e os bombeiros. Mas nos cenários reais, as pessoas estão sozinhas e com este tipo de proteções."

Em resposta à polémica, a ANEPC desvalorizou o facto de o material utilizado ser inflamável, uma vez que é apenas uma proteção contra o fumo. Num comunicado, escrevem que os materiais distribuídos não têm como função o "combate a incêndios" nem "assumem características de equipamento de proteção individual". "Trata-se sim de material de informação e sensibilização sobre como devem agir as populações em caso de incêndio, aumentando a resiliência dos aglomerados populacionais perante o risco de incêndio rural", reiteraram.

Há pouco mais de um ano, o secretário de Estado da Proteção Civil tinha confirmado que as golas antifumo eram inflamáveis, noticiou esta terça-feira a SIC Notícias. Numa entrevista dada a 4 de julho de 2018, no programa "Queridas Manhãs", da SIC, José Artur Neves - ao apresentar o kit "Aldeia Segura" - reconheceu na conversa com Júlia Pinheiro que a gola era "um gorro, para proteger do fumo" e que era preciso humedecer antes de usar.

A apresentadora perguntou se se tratava de um "tecido especial" e se não era inflamável. "Não não é, deve humedecer-se", esclareceu o governante.

O investimento total dos kits de emergência foi de 328 mil euros, entre os quais 125 mil diretamente para a fabricação das golas.

Foi o demissionário adjunto do secretário de Estado da Proteção Civil, Francisco Ferreira, quem terá indicado nomes de empresas que poderiam fornecer estas golas e o restante material dos kits. Mas nenhuma das empresas referidas é especialista no setor de emergência. Na lista, há uma empresa de bordados, uma de confeções de roupa e até outra de eletrodomésticos. Acabaria por escolher as já conhecidas Foxtrot Aventuras e a Brain One. Sob pressão, Francisco Ferreira acabou por se demitir esta segunda-feira do cargo que ocupava desde dezembro de 2017, depois de nomeado como técnico especialista.

O tema não deixou o ministro da Administração Interna indiferente, que mandou abrir um inquérito urgente sobre a contratação de material de sensibilização para incêndios".

Negócios familiares? Lei prevê demissão

É mais um das polémicas que estão a assolar a Secretaria da Proteção Civil nos últimos dias. O filho do secretário de Estado terá celebrado pelo menos três contratos com o Estado, já depois de o pai, José Artur Neves, ter assumido as suas funções governativas. Mas a lei é clara: família direta não pode fazer negócios com o Estado e tal incompatibilidade prevê a demissão do próprio secretário de Estado. A notícia foi avançada pelo jornal Observador .

Aos 28 anos, Nuno Neves é sócio de duas empresas cujo proprietário é um banqueiro do concelho de Arouca, onde mora o secretário de Estado da Proteção Civil: a Zerca Lda. (da qual detém 20%) e a Postescaliptos Lda. (com 50% a seu cargo). Ambas dedicadas à engenharia civil, área na qual Nuno Neves se formou. A segunda criada em 2017. A primeira em 2015 e da qual o pai já tinha sido presidente, durante 12 anos, até chegar ao Governo. Foi esta mesma que celebrou pelo menos três contratos de milhões com o Estado, de acordo com o portal governamental Base, onde podem ser consultados os contratos públicos. Todos eles só no último ano, quando José Artur Neves já tinha integrado o Governo.

Contudo, a legislação portuguesa não deixa margem para dúvidas: tal é ilegal. Segundo o artigo 8.º da lei das incompatibilidades e impedimentos de titulares de cargos públicos e políticos, caso o descendente de um governante celebre contratos com entidades estatais, o mesmo é obrigado a demitir-se. A não ser que o familiar não seja titular de mais de 10% do capital da empresa prestadora de serviços. Mas se a demissão não acontecer, o Ministério Público deve dar seguimento a um processo de destituição junto do Tribunal Constitucional.

A lei dita ainda que "a esta proibição ficam sujeitas as empresas cujo capital, em igual percentagem (mais de 10%), seja dos seus ascendentes e descendentes em qualquer grau e os colaterais até ao 2º grau". Também as empresas "em cujo capital o titular do órgão ou cargo detenha, direta ou indiretamente, por si ou conjuntamente com os familiares referidos na alínea anterior, uma participação não inferior a 10%".

Em resposta à polémica, o secretário de Estado garantiu não ter conhecimento quer da celebração de tais contratos quer da "existência de qualquer incompatibilidade neste domínio". Rejeita qualquer favorecimento pessoal e não se demite. "Não tenho qualquer participação na referida empresa nem intervenção na sua atividade. Não tive qualquer influência nem estabeleci qualquer contacto, nem o meu filho alguma vez invocou o seu grau de parentesco, de que pudesse resultar qualquer expectativa de favorecimento pessoal", declarou José Artur Neves, numa nota enviada à comunicação social.

Lamentou a "utilização de questões relativas à situação profissional" de um familiar, às quais referiu ser "totalmente alheio, e que nada têm a ver com o escrutínio público" da sua atividade como secretário de Estado.

Entre os três contratos mencionados, encontram-se dois com a Universidade do Porto. Um deles no valor de 14,6 mil euros (por concurso público) e outro por 722 mil euros (por ajuste direto). Já o terceiro refere-se a uma obra para a Câmara Municipal de Vila Franca de Xira, também por concurso público, no valor de 1,4 milhões euros.

As reações à controvérsia não tardaram a chegar às redes sociais. Na sua conta de Facebook, esta terça-feira, o deputado do PSD Carlos Abreu Amorim comentava o caso, criticando a atuação em causa. "Cresceram na sombra admirada do exemplo de Sócrates e nunca acharam nada mal - até invejaram muito os modos e a estética. É a fábula do sapo e do lacrau, está-lhes na natureza não há nada a fazer...", escreveu. "Esta gente não se aguenta."

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