Era um grupo de miúdos, 12, que chocava Estremoz, Évora, com os seus costumes, próprios da idade e da capital, em 1978. "O Alentejo não estava preparado para aquilo", lembra o diretor do serviço de cirurgia cardiotorácica do Hospital de Santa Marta, em Lisboa, José Fragata, hoje com 66 anos. Dentro do grupo dos recém-formados a fazer o Serviço Médico à Periferia, as mulheres fumavam cachimbo e davam o braço a amigos para ir ao café..O projeto-embrião daquele que viria a ser o Serviço Nacional de Saúde (SNS), que nasceu em 1979 e comemora neste domingo 40 anos, tinha como objetivo levar jovens médicos para o interior, onde até então as populações praticamente não tinham acesso a cuidados de saúde. Antes, as alternativas passavam por uma Caixa de Previdência para aqueles que descontavam parte do seu salário e para outros a doença significava vender pertences para pagar uma consulta particular..José Fragata e os colegas eram inexperientes, mas tinham vontade de salvar, até quem lhes diziam não ser suposto. "Tínhamos lá umas velhinhas com AVC que nós queríamos tratar e as freiras espanholas diziam: "Doutor, não vale a pena medicar. O que elas precisam é de roupinha lavada e caldinhos calientes. Depois morriam", conta o médico. "Fizemos muitos erros, mas a população também ainda não tinha nada. O SNS estava a arrancar.".O programa durou até 1982, mas nessa altura o SNS já estava a consolidar-se e dois anos depois surgiria a figura do médico de família. "O SNS permitiu não o avanço peça a peça mas chegar a mais pessoas, tem uma distribuição social. Mas os sucessos não podem ser separados dos avanços da medicina em geral", diz José Fragata..Nos últimos quarenta anos, a mortalidade infantil alcançou resultados muito positivos, tal como nas doenças vasculares ou nas oncológicas, a área da imagiologia modernizou-se, foram erradicadas doenças infecciosas e Portugal tornou-se um exemplo na transplantação de órgãos.. Do laboratório ao bloco de transplantes.José Fragata protagonizou muitas das conquistas na área dos transplantes, principalmente pulmonares, nos últimos anos. Desde 2001 que o Hospital de Santa Marta realiza estas operações (antes obrigavam os doentes a deslocar-se a Espanha) com sucesso. Só neste ano já foram realizados 29 transplantes pulmonares nesta unidade de saúde..Para o médico, tudo começou na garagem do Hospital de Santa Cruz, unidade onde exerceu depois de ter deixado Estremoz. José Fragata e João Queiroz e Melo criaram um laboratório experimental onde testavam em cães as operações que ambicionavam fazer. "Matei muitos cães", confessa o cirurgião José Fragata. E foi assim que se prepararam para o primeiro transplante cardíaco realizado no país, em 1986, por Queiroz e Melo e assistido por José Fragata.."Em Santa Cruz, as coisas eram fáceis. O hospital era novo, pequeno, com uma equipa dinâmica. E havia respeito pelas figuras tutelares, quando o doutor [Manuel] Machado Macedo [presidente do conselho de administração] ia ao ministério, acontecia qualquer coisa, hoje já não é assim. As grandes figuras estão diluídas.".Mas os tempos e as suas dificuldades não impediram que o doutor Fragata protagonizasse vários momentos inovadores. Especializou-se no Reino Unido em cirurgia pediátrica e, depois, realizou em Portugal um dos primeiros transplantes em crianças (1992). Durante a carreira, operou cerca de quatro mil crianças e mais de seis mil adultos. .Em 2017, fez o primeiro implante de um coração artificial. "Tecnicamente a operação não vale nada, mas foi emocionante para a saúde em Portugal. As sociedades precisam destas coisas, não precisam de más notícias. O país reagiu muito bem a isso", recorda. Um ano depois, a equipa do Hospital Santa Marta estava a aplicar a mesma técnica numa criança com 2 anos.. "Temos de ser mais progressistas"."Estamos cheios de vitórias, mas isso não quer dizer que devamos ficar a olhar para elas. Há algo de poético no SNS, percebo, mas a medicina mudou muito e mudou mais do que o SNS. Há aqui uma crise de crescimento", diz José Fragata..Para o médico com 40 anos de serviço público e 21 de prática no privado, falta mais financiamento, que deveria também ser mais bem aplicado. Segundo a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), Portugal tem uma taxa de desperdício na saúde que ronda os 21%, "fruto de má gestão, listas de espera e tratamentos mal prestados"..José Fragata sugere uma reforma na carreira médica que privilegie a progressão, a integração de cuidados de saúde e uma distância notória entre o poder e a saúde. "Nós precisamos de uma reforma na saúde que não pode durar o tempo de uma legislatura. Muda o governo, mudam os conselhos de administração dos hospitais. Há política a mais nos hospitais", refere. "Temos de ser mais progressistas, digo eu, que sou velho.". Reforma? "Ainda precisam de mim".A idade faz-se sentir, mas a ideia de pôr de lado a bata branca vai sendo adiada. José Fragata quer operar até aos 70 anos. "Ainda estou bonzinho. Ainda precisam de mim." Aos 66, faz quatro a cinco cirurgias por semana e sente cada vez mais o peso da responsabilidade quando olha para um tórax vazio. "Vamos ficando mais sensíveis com a idade. Com netos, o receio de falhar piora. É uma consciência emocional, uma pequena fraqueza. No outro dia, estava a falar com o pai de uma criança que tinha operado e vieram-me as lágrimas aos olhos. Não é suposto. A criança até estava bem."."Tenho cada vez mais noção de que um doente que adormece coberto de betadine, paralisado numa marquesa, é o ser mais indefeso que há ao cimo da Terra. Portanto, a equipa toda tem de dar o seu melhor a essa pessoa", diz..É essa a mensagem que passa aos seus alunos na Universidade Nova de Lisboa, onde é vice-reitor, e aos internos. "A coisa de que eu mais gosto na minha profissão hoje em dia são os miúdos. Tenho imenso prazer no brilho do olhar, na inocência. Pego em alunos de Medicina, mando desinfetá-los e no bloco, pego-lhes na mão e ponho-as em cima do coração a bater."