Darlene: "Nunca senti pena de uma guarda-redes. Mesmo quando o Benfica goleou 32-0"

A jogadora brasileira da equipa de futebol feminino do Benfica chegou aos 101 golos em 25 jogos. Nesta entrevista fala da infância, da evolução da modalidade e da igualdade de direitos, e garante que nunca pensou "tirar o pé" para não humilhar os adversários. <em>(Artigo publicado originariamente a 16 de maio de 2019)</em>
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A época ainda não chegou ao fim e já tem 101 golos marcados. Alguma vez imaginou que seria possível atingir este número?
Bem, para ser sincera não pensei que fosse possível. É de facto muito golo! Mas quero sempre fazer o meu trabalho da melhor maneira possível. Isto não é só um feito meu. Tenho de agradecer às minhas colegas de equipa, aos treinadores e ao clube por ter conseguido atingir este sonho. E espero marcar mais até ao final da temporada. Neste momento sinto-me uma pessoa realizada com a meta que alcancei.

Tem noção de que tem mais golos marcados do que Messi e Ronaldo juntos
Sim, e fico feliz por isso. Nem tenho palavras para descrever. Este êxito deve-se ao trabalho que tenho feito ao longo da minha vida, desde criança. Quando cheguei ao Benfica no início da época deram-me confiança, disseram-me que eu tinha condições para ser uma grande goleadora. Os golos começaram a aparecer e, a dada altura, questionei-me se seria possível chegar à marca dos cem golos. Graças a Deus consegui e não quero ficar por aqui. Quero mais!

Chegou a fazer alguma aposta com o Jonas, do plantel principal do Benfica, sobre quem ia marcar mais golos nesta época?
[risos] Não, nunca. Já estive com ele, conversámos, tirámos fotografias juntos, mas nunca falámos sobre isso.

O facto de o Benfica jogar num campeonato com equipas de valor muito inferior, com jogadoras não profissionais, ajudou...
Não posso dizer que se deve só a isso. Nós sempre respeitámos os adversários, apesar de serem ou não equipas mais fracas do que nós. Como já disse, isto é o resultado de muito trabalho. Houve sempre uma grande confiança na equipa e em mim. Eu própria, há algum tempo, coloquei esse objetivo como uma meta a atingir. Se as pessoas confiavam tanto em mim e diziam que eu era capaz de chegar aos cem golos... eu tinha de corresponder. Mas admito que não era em qualquer divisão que seria capaz de chegar aos cem golos. Mas se na próxima temporada, na I Divisão, surgir essa oportunidade, vou em busca desse objetivo.

Esta época do Benfica tem sido marcada por goleadas à antiga (tem 397 golos marcados). Uma foi um recorde mundial no futebol feminino, os 32-0 ao Pego. Isto não pode ser considerado uma humilhação ao adversário? Alguma vez pensaram abrandar para não envergonhar a outra equipa?
Nunca existiu esse sentimento de humilhação em relação à equipa adversária. Somos profissionais, estamos a fazer o nosso trabalho e nunca houve a tentação de abrandar. Respeitámos sempre os outros clubes, mas queremos sempre marcar mais golos. A nossa missão é pôr em prática o que treinamos durante a semana e sobretudo honrar a camisola do clube. Nunca se colocou essa questão de antes de um jogo combinarmos entre nós "chegamos ao golo tal e levantamos o pé". Não, nada disso. Treinamos e lutamos todos os dias para conseguirmos o maior número de vitórias e golos possível.

Alguma vez sentiu pena de uma guarda-redes? Por exemplo, na goleada de 32-0 ao Pego quando marcou dez golos...
Não, nem nessa goleada dos 32-0. Nunca senti pena de uma guarda-redes nem posso sentir.

Mas no final do jogo teve alguma palavra de conforto com a guarda-redes que tinha acabado de sofrer 32 golos?
Não, não falei com ela. Mas às vezes, em certos jogos, quando uma guarda-redes faz uma boa defesa a um remate meu, sou capaz de ir ter com ela, cumprimentá-la e dar-lhe os parabéns. Mas ao contrário não.

Fale-me um pouco da sua juventude e de como o futebol surgiu na sua vida...
Nasci em São José do Rio Preto, no estado de São Paulo. Os meus pais sempre gostaram muito de desporto, o meu pai inclusivamente foi jogador de futebol. As minhas irmãs mais velhas também sempre gostaram de futebol e jogavam na escola. Um dia, as minhas irmãs pediram ao meu pai para montar uma equipa onde elas pudessem jogar. E o meu pai acabou por criar uma equipa de futebol. E assim foi. Cresci no meio do futebol até que decidi experimentar e entrei na equipa. Uns tempos depois o meu pai, que era o treinador, disse às minhas irmãs para pararem e dedicarem-se aos estudos. E fiquei apenas eu.

Já marcava muitos golos na altura?
Sim, até antes, nas peladas de rua. Depois a equipa dos meus pais começou a crescer, hoje é uma das maiores do Brasil a nível de futebol feminino. Até ao ano passado chamava-se Rio Preto Sport Clube, atualmente é o Ponte Preta.

Esse clube tinha a particularidade de ter a sua mãe como presidente e o seu pai como treinador. Como foi ser treinada pelo seu pai? A exigência era maior?
A minha mãe era coordenadora, o meu pai o treinador. Era um situação um pouco difícil, até algo injusta, porque cobrava mais de mim por ser filha dele. Às vezes até em casa havia pequenas brigas. Quando era adolescente sentia mais essa situação. A partir do momento em que fui crescendo e comecei a ter mais experiência isso acalmou. Mas o meu pai sempre apoiou a minha carreira.

Desistiu dos estudos por causa do futebol?
Francamente, nunca gostei muito de estudar. Terminei o ensino básico e os meus pais chegaram a insistir para eu entrar na faculdade. Mas eu não quis, apesar de na altura dar para conciliar as duas coisas. Eles entenderam a minha opção.

Na escola já se destacava nos jogos contra os rapazes?
Era bom de mais! Havia jogos interturmas, equipas de rapazes contra as raparigas. Eu montava a minha equipa com as meninas da turma e ganhávamos sempre. Foram bons tempos, era a melhor parte da escola.

O Brasil tem a melhor jogadora de futebol de todos os tempos, a Marta, considerada seis vezes a melhor do mundo. Ela teve alguma influência na sua carreira, por também ser brasileira e ter chegado tão longe?
A Marta, curiosamente, quando tinha 16,18 anos, chegou a jogar na equipa dos meus pais. Conhecia-a pessoalmente, mas na altura éramos duas criançonas. Sempre fui uma grande fã da Marta, não só pela grande jogadora de futebol que é, mas por ser uma mulher batalhadora e ter chegado onde chegou. Gosto muito dela. Hoje em dia jogamos juntas na seleção brasileira e eu sei bem todos os esforços que ela fez para conseguir estar na posição de destaque a que chegou. Ela mereceu tudo de bom que lhe aconteceu na vida.

E que jogadores brasileiros tem como modelo ou ídolos? Ronaldinho Gaúcho?
O Ronaldinho, claro, um superjogador. Mas, apesar de eu não me recordar muito bem, o meu pai diz-me que em criança eu gostava muito do Bebeto. Por isso é que uso o número 7...

... pensava que o 7 tinha alguma coisa que ver com o Cristiano Ronaldo...
Em todas as equipas onde estive sempre quis usar o 7. Por causa do Bebeto, mas admito que não me recordo muito bem de o ver jogar. Era muito criança, na altura. Depois, claro, há outros como o Ronaldinho Gaúcho e o Ronaldo Fenómeno, grandes jogadores que me marcaram. Craques.

Quem é o seu avançado preferido no futebol atual?
O mágico, o Messi. Para mim é indiscutível. Gosto muito do Cristiano Ronaldo, claro, mas para mim o Messi é um extraterrestre, parece de outro planeta.

Nos últimos anos é notória uma grande evolução no futebol feminino, em Portugal e no exterior. No outro dia em Espanha, um jogo entre o At. Madrid e o Barcelona bateu o recorde de assistência com mais de 60 mil pessoas. E recentemente um Benfica-Sporting quase encheu o Estádio do Restelo...
É um facto que o futebol feminino está a evoluir bastante. E em todo o mundo! Há muitos clubes fortes em masculinos que já têm também uma grande dimensão nas equipas femininas. E para nós, jogadoras, que durante muitos anos estivemos um pouco esquecidas e de certa maneira à margem do mediatismo, é um motivo de grande satisfação, porque começamos a ver que a modalidade tem cada vez mais visibilidade. Havia um grande preconceito em relação às mulheres jogarem futebol a nível profissional. E hoje em dia as coisas já não são assim. Em alguns casos temos a mesma ou mais projeção do que alguns homens. Fico feliz por isso e acredito que as raparigas que estão nas camadas jovens vão ter ainda um futuro melhor. Nós, mulheres, já sofremos muito no passado. Hoje algumas de nós já estão à frente de muitos homens.

Falou nessa questão do preconceito. Alguma vez foi alvo de comentários machistas?
Claro que sim, muitas vezes. Mas nunca liguei muito a essas situações e tentei sempre não reagir. Graças a Deus essa mentalidade está a mudar.

Estamos também a assistir a uma discussão em torno da igualdade de direitos entre o futebol feminino e o masculino. Várias jogadoras importantes têm feito campanha nesse sentido. Qual a sua posição em relação a este tema? Acha que algum dia vai existir essa igualdade em termos de salários praticados, por exemplo?
É uma questão que está na ordem do dia e acredito que sim, que caminhamos para aí. Já ouvi muita gente dizer que atualmente há mulheres que ganham mais do que alguns homens no futebol das divisões inferiores. Não falo do meu caso, mas conheço muitas mulheres que recebem um bom salário. Mas queremos sempre mais. Quem não quer?

A Darlene tem sido chamada à seleção brasileira e neste ano vamos ter um Mundial feminino. Vai estar presente? Já tem alguma indicação de que será convocada?
Não sei, mas tenho esperança de ser convocada. Estou a trabalhar bem e a equipa técnica conhece-me, por isso estou confiante. Se não for convocada, ficarei a torcer por fora.

Porque aceitou o convite do Benfica? Numa entrevista chegou a dizer que tinha mais propostas...
Recebi um telefone do treinador a fazer-me o convite. Ele falou no Benfica e eu só disse: "Meu Deus, estou a sonhar?" Falou-me do projeto, da grandeza do clube, e eu fiquei logo convencida. Lembro-me de que quando cheguei e assisti no estádio a um jogo do Benfica até chorei de emoção. Representei bons clubes, mas nenhum com a grandeza do Benfica.

Fora dos relvados, fale-me um pouco de como é a sua vida. É casada, tem filhos...
Sou casada, sim, mas não tenho filhos. Tenho seis cães [risos], mas não aqui, no Brasil. Sou uma pessoa tranquila, caseira. Procuro descansar e dar uns passeios.

Tem 29 anos. Pensa jogar até que idade?
Não penso nisso ainda. Enquanto me sentir bem e útil, vou continuar a jogar.

Como vê a atual situação política no Brasil com a eleição de Bolsonaro? É contra, a favor...
Não gosto de me meter na política. Gosto de ficar na minha.

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