Dario Fo. Calou-se o bobo inconformado

Horas antes de Bob Dylan ser anunciado Nobel da Literatura, morreu o autor laureado em 1997 que tanta controvérsia provocou
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Era uma vez uma aldeia no topo de um penhasco que deslizava em direção ao lago Maggiore. Apesar de as pessoas de fora os alertarem para o perigo, os aldeões achavam que nada de mau ia acontecer. Mesmo quando já estavam mergulhados na água, comentavam: "Os peixes aprenderam a nadar no ar." Esta história, ouvida por Dario Fo ao mestre soprador de vidro da terra onde nasceu, foi um dos momentos sem gargalhadas do discurso do italiano quando recebeu o Nobel da Literatura, em 7 de dezembro de 1997. O bobo do teatro morreu ontem, no hospital Luigi Sacco, em Milão, aos 90 anos.

Chamar-lhe bobo não é arriscado, já que foi assim que ele próprio se qualificou nesse discurso de Estocolmo, respondendo à azeda controvérsia que a decisão da Academia Sueca provocara. Reivindicou o seu lugar na sátira social e política, comparando-se aos bobos medievais, e até distribuiu pela audiência os desenhos que eram a primeira versão do discurso.

Mesmo no meio teatral português, não há unanimidade em torno do autor, artista, ator, encenador, pintor, músico, ativista político. Jorge Silva Melo interrompeu ontem um ensaio dos Artistas Unidos para explicar que Dario Fo era "um filho da televisão". Já lançado numa carreira de sitcom, em 1962 viu censurado e proibido o programa Canzonissima, que protagonizava na RAI com a mulher de toda a vida, Franca Rame. "Foi um enorme escândalo na altura. Ele levou para o teatro as técnicas televisivas de stand up comedy que existiam nos Estados Unidos, que em França tinham um paralelo na comédia de boulevard e que chegaram a Portugal com Herman José. Ele foi o que seria o Ricardo Araújo Pereira se fosse posto fora da televisão e andasse a fazer teatro pela província." Elogia ainda a capacidade de interpretação do ator: "Ele fez a História do Tigre de uma forma sublime, genial."

Luís Miguel Cintra, pelo contrário, é rápido a dizer que não conheceu "nem quis conhecer" Dario Fo. Encenou em 1981 Não Se Paga, Não Se Paga, na Cornucópia, e nem o enorme êxito da peça com que percorreu o país o fez admirar o autor. "Não vejo nada de inovador na obra dele, não inventou nada. São textos muito superficiais e demagógicos que ele mastigou e pôs a render. As pessoas riem-se daquilo como se riem de qualquer outra coisa." Helder Costa, de A Barraca, admira o teatro de Dario Fo, "uma grande lição de sátira inteligente" e ainda mais "a coragem com que criticou o Vaticano - aquele Vaticano, já que se tornara amigo do Papa Francisco - e o poder de Berlusconi, numa militância sem falhas. O ator e encenador conheceu Dario Fo, em Paris, e encenou A Morte Acidental de Um Anarquista e Que Dia tão Estúpido.

Nascido em 24 de março de 1926 em Sangiano, uma pequena povoação do Norte de Itália, quase na fronteira com a Suíça, Dario Fo foi conhecendo o país desde a infância, ao ritmo das sucessivas colocações do pai, que trabalhava nos caminhos-de-ferro. Do avô absorveu a capacidade de contar histórias - era vendedor ambulante, deslocava-se numa carroça e atraía clientela com conversas astutas temperadas com episódios locais. Estudou Arquitetura e abandonou o curso a poucas cadeiras do fim. Com os pais envolvidos na resistência, ele próprio desertou do exército de Mussolini.

Entrou no mundo do teatro, que se encontrava em ebulição, como toda a atividade cultural do pós--guerra, para se fixar nos palcos, como o do Piccolo Teatro de Milão. Entrou na televisão e foi afastado pelo mesmo tema que o tinha desgostado antes na arquitetura: a corrupção na construção civil.

O encontro decisivo com Franca Rame, uma atriz de uma família de bonecreiros, foi em 1951. A colaboração dos dois na criação teatral (assim como na militância política e na vida) passou pela companhia Fo-Rame e foi tão intensa que, no famoso discurso do Nobel, Dario Fo anunciou que repartia o prémio com ela. Juntos puseram de pé dezenas de espetáculos de teatro e ópera, juntos militaram alguns anos no Partido Comunista Italiano e depois em lutas sociais e cívicas, juntos fizeram televisão e cinema. Tiveram um filho: Jacopo Fo, escritor, cartunista, ator e ativista.

Franca morreu em 29 de maio de 2013, quando a Itália vivia um tempo de indefinição política após eleições legislativas. Beppe Grilo, líder do movimento Cinco Estrelas, propôs então o nome de Dario Fo para a presidência de Itália.

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