É precisamente na área das relações internacionais que Bolsonaro mais tem falhado, quer pela aliança sem frutos com os EUA de Donald Trump, a sua principal referência política, quer pelos conflitos com meio mundo, Europa incluída. "Os danos à imagem do Brasil na questão da Amazónia só se revertem com a saída de Bolsonaro, especialmente na Europa e na relação com Alemanha e França", sublinha Vieira. Entre os pontos positivos do ano de estreia do presidente destaca a ação dos ministros, ambos considerados da ala técnica, da agricultura e da infraestrutura..Qual o balanço de Jair Bolsonaro, sobretudo na sua área de especialidade, a política externa?.O balanço na política externa é negativo..A prioridade à relação com os EUA acabou chamuscada pela falta de empenho de Washington na entrada do Brasil na OCDE e pela imposição de tarifas ao aço e alumínio brasileiros anunciada por Donald Trump?.Sim, a aposta no alinhamento aos EUA não nos trouxe resultados positivos e, embora o governo não o reconheça publicamente, há uma reavaliação dessa política, dessa abordagem. A cúpula governamental desenvolveu algumas suspeitas a propósito dessa relação..Além disso, houve muitos outros focos de tensão..Na minha opinião desnecessários. A começar pela Venezuela mas também pelo mundo árabe, por causa da intenção, não concretizada ainda, de mudar a embaixada brasileira em Israel de Telavive para Jerusalém. E depois as desinteligências, digamos assim, com a Europa a propósito da Amazónia. No essencial, a política externa de Bolsonaro agiu sobretudo por ideologia, afinal, tudo o que o presidente criticava nos governos do PT..Houve pontos positivos, entretanto?.Sim, vindos sobretudo de dois ministros técnicos. A ministra Tereza Cristina, da Agricultura, vista por lideranças da área do agronegócio como um contraponto essencial à ação ideológica do ministro dos Negócios Estrangeiros Ernesto Araújo e também à política ambiental, do ministro Ricardo Salles. O agronegócio sabe que uma política ambiental agressiva prejudica também o seu desenvolvimento. E, por outro lado, o ministro Tarcísio Freitas, da Infraestrutura, que tem atraído investimentos e pode continuar a atraí-los desde que Bolsonaro não atrapalhe - e ele atrapalha muito. Aliás, o ministro Freitas, que por apresentar resultados tem satisfeito os, chamemos-lhe assim, "donos do PIB" pode ser uma estrela em ascensão e vir a ter um peso eleitoral surpreendente..No seu primeiro ano, Bolsonaro mostrou quais semelhanças com Trump, assumidamente seu ídolo político, e quais diferenças?.Ele quer emular Trump por muitas razões e tem-no feito no modelo retórico, sobretudo, de ação polémica na internet. Logo no início do mandato, durante o Carnaval, surgiu o momento que disse ao que ele vinha com aquele episódio do Golden Shower [quando Bolsonaro partilhou nas redes sociais um exemplo da prática sexual de urinar sobre o parceiro]. Trump é especialista em Twitter, Bolsonaro usa muito o Facebook mas também o aplicativo Whatsapp, mas no fundo a ideia é a mesma, a de lançar balões de ensaio, de testes, a ver se dada tese cola, ou não, na população..Então há método no aparente caos?.Sim, já foi comparada a sua estratégia, não apenas à de Trump, mas também à dos militares que lançam sinais via rádio em sentido contrário para confundir o inimigo. Ele e os filhos fazem-no e, portanto, sendo um trabalho a meios com os próprios filhos, não dá para pensar que seja uma ação não concertada. Um outro exemplo foi o da possibilidade de cancro na pele - o próprio Bolsonaro falou nisso à imprensa, dando um ar de transparência, a imprensa noticiou, como não podia deixar de ser, e depois ele desmentiu. Falar e desmentir-se faz parte do método desta extrema-direita populista do século XXI - mensagens curtas, superficiais e contraditórias são a receita..E diferenças para o presidente norte-americano?.Trump tem sido fiel ao "America First" [primeiro os EUA], protegendo muito os trabalhadores dos EUA, enquanto Bolsonaro, preocupado com o emprego, claro, não vê tanto a proteção como caminho, optando por outros indicadores como PIB e investimentos. Tanto que, no plano interno, quem piorou de vida ao longo deste ano foram os mais pobres e isso a prazo é mau para o Brasil e para o governo porque um dos problemas que ele disse tentar combater seria a globalização, ou globalismo, como a extrema-direita prefere nomear, uma das causas, defende, da desigualdade..Os danos à imagem do Brasil no estrangeiro em 2019 são irreversíveis?.Na questão da Amazónia os danos para a imagem do Brasil são irreversíveis. Só serão reversíveis com a saída dele. Mas é um conflito sobretudo com a Europa, não sei se o chamado "Sul Global", a América Latina e a África, ou se os consumidores de carne da pragmática China estão muito preocupados com o assunto. Na Europa, cuja importância no mundo ainda não é, de todo, negligenciável, acho irreversível o dano, sobretudo na relação com Alemanha e França, enquanto Bolsonaro for presidente. A não ser que elas próprias, Alemanha e França, também optem pela onda populista de extrema-direita, sendo que no caso francês, com tantos protestos contra Emmanuel Macron, esse desfecho nas eleições de 2022 não possa, de maneira nenhuma, ser descartado. Em relação a danos à imagem do Brasil no "Sul Global" penso que a política em relação ao conflito Israel-Mundo Árabe, por causa da imagem de opressor do primeiro na América Latina e na África, pode ser mais importante..Mas o Médio Oriente é um tema longe de ser pacífico dentro do próprio governo..O agronegócio, para quem o mundo árabe é um consumidor extremamente importante, nega-se a concordar com a decisão de transferir a embaixada para Jerusalém, entretanto transformada em abertura de escritório comercial na cidade, por hostilizar o cliente. Mas o setor evangélico vê-a como questão essencial. No entanto, o que coloca a comida na mesa dos brasileiros é o superavit do agronegócio - os evangélicos não enchem a barriga de ninguém a não ser das suas lideranças..O ano de 2020 terá eleições municipais, ao que tudo indica ainda sem a presença do novo partido do presidente, a Aliança Pelo Brasil, em processo burocrático de formação. Isso é muito prejudicial para Bolsonaro?.Limita-o mas não é tão importante assim. Mais limitador para ele seria se continuasse no PSL [partido do qual o presidente da República e os seus mais fiéis apoiantes saíram em outubro em rutura com o líder da sigla Luciano Bívar]. No Brasil, na América Latina, não sei se é tradição ibérica, os partidos são muito construídos em torno de uma personalidade, os políticos gostam de ter um partido para chamar de seu. E o PSL era o partido do Luciano Bívar, enquanto o Aliança será o do Bolsonaro. Entretanto, eão concorre mas terá sempre "partidos hospedeiros"..Como Marina Silva nas presidenciais de 2014, quando o seu Rede Sustentabilidade também não foi capaz de concorrer a tempo e o PSB, do entretanto falecido candidato presidencial Eduardo Campos, a abrigou..E o Aliança vai já lançar candidatos por outros partidos, sendo que o MDB [do ex-presidente Michel Temer] será um desses "hospedeiros". Por outro lado, Bolsonaro pode ser importante dando o apoio a candidatos a vereadores, por exemplo, que nas eleições gerais de 2022 poderão, em contrapartida, migrar para o Aliança. E há estudos de que vereadores têm muita possibilidade de nas eleições seguintes se tornarem deputados estaduais ou federais. Ou seja, não ter partido limita a ação de Bolsonaro mas ele não deixará de ter forte influência.