NOVE MESES de emissão no horário nobre, sofrimento em doses inesgotáveis e muitas danças foi quanto a exótica Jade teve de passar antes de conseguir ficar com Lucas e a filha em Marrocos, conquistando a felicidade eterna na novela O Clone (uma produção da Rede Globo escrita por Glória Perez que passou em Portugal entre 2001 e 2002). E esses mesmos nove meses de lágrimas, ritmos árabes e promessas de amor da telenovela bastaram para despertar uma febre mundial que dura até hoje: as mulheres quiseram sentir-se tão bonitas como Jade, perceberam que o corpo é uma expressão da sua feminilidade e decidiram trabalhá-lo em pleno aprendendo a dança oriental. Foi assim que a dança do ventre veio definitivamente para ficar, sensualíssima sem apelar à vulgaridade..«Esta dança é muito mais do que beleza e aparência, muito mais do que o estereótipo da bailarina semidespida que faz tremer a barriga para seduzir os homens, por isso prefiro chamar-lhe dança oriental e não do ventre», explica logo à partida Carla B (o diminutivo artístico de Bernardes), psicóloga de 37 anos, licenciada pela Universidade do Minho, que dança com empenho desde 2001 (nessa altura iniciar-se-ia a sério nos mistérios orientais em aulas regulares com a professora Íris e em aulas pontuais com Myriam Szabo, Joana Saahirah e Prisca D). «Nos países árabes, inclusive, esta dança é conhecida como raks sharqi – à letra “dança do Oriente” – e isso já diz tudo.».Uma tarde, conta, quando passava pelo Instituto Superior de Psicologia Aplicada (ISPA), decidiu entrar e experimentar por graça uma aula gratuita que Joana Saahirah ia dar. «Foi amor desde o primeiro instante, nunca mais pude largar aquele sentimento de satisfação, de ser livre, ser eu própria», recorda..Desde então, o seu trabalho de fundo tem sido conciliar as aulas de dança oriental com a tarefa de dignificar aquela arte, primeiro construindo um site integrado onde constasse toda a informação que seria importante a nível nacional, mais tarde organizando cursos, workshops com professores estrangeiros e criando a Companhia de Dança Oriental, juntamente com Ana Belchiorinho (Ana B), para divulgar e promover a dança do ventre no país..Actualmente, e além de manter acesa a organização de eventos, aulas, encontros e espectáculos (o próximo está já agendado para dia 27 de Novembro no Fórum Cultural José Manuel Figueiredo, na Baixa da Banheira), os objectivos que se seguem passam fundamentalmente por criar a Associação Nacional de Dança Oriental (ANDO) – mais completa do que a companhia que a precedeu – e apostar em cursos profissionalizantes longos, capazes de legitimar o trabalho dos profissionais que se dedicam à dança e evitar que qualquer pessoa possa dar aulas só porque lhe apetece. Para se ser professor, afinal, observa Carla B, não é preciso apenas conhecer muito da dança, da cultura e dos ritmos: tem de se ter também conhecimentos básicos de anatomia e pedagogia..«Um professor sem tais requisitos poderá estar a prejudicar os seus alunos, de modo que eles próprios deviam ser os primeiros a exigir essa qualificação», diz. O primeiro curso acontece já no próximo ano lectivo de 2010, ministrado por uma bailarina egípcia a viver em Portugal, e divide-se em módulos que aprofundam cada género de folclore, com os seus ritmos específicos, indumentárias próprias, especificidades culturais e geográficas e os instrumentos mais tocados nos vários tipos de dança..O FINAL d’O Clone e da aventura da heroína muçulmana em terras brasileiras não significou, ao contrário do que seria previsível, um esmorecer do interesse pela dança oriental: desde essa altura que vários espaços e professoras se abriram ao ensino e à prática dos vários estilos. «Muita gente, cada vez mais, está a dançar», observa a professora Carla B. O fenómeno de adesão à dança oriental repete-se agora com a novela Caminho das Índias (curiosamente também da Globo e de Glória Perez), em exibição nas noites da SIC. A notoriedade que a cultura indiana tem alcançado com os episódios abre caminho a que se fale das danças tradicionais típicas do país e também, por acréscimo, da dança do ventre: os movimentos são diferentes em cada género, mas ambos são sinuosos e alongados, nascidos na sua essência para celebrar a vida e ligar a pessoa que dança a si mesma e ao divino. Os cabelos das mulheres são igualmente longos, a maquilhagem insistentemente misteriosa, as roupagens coloridas encobrem e revelam do mesmo modo as curvas desenhadas pelos movimentos do corpo..«No tempo d’O Clone, quando as mulheres dançavam em cerimónias ou para os maridos, eu ia para a frente do televisor da sala e tentava imitar os movimentos que faziam», lembra Alexandra Dias, encantada com o equilíbrio irrepreensível da dança oriental e o modo como ela lhe devolveu a consciência do corpo que desconhecia quase por completo. Até o guarda-roupa mudou quando sentiu o apelo de trocar os cortes direitos de fazenda por saias compridas e calças de balão, pelos brincos de influências marroquinas e as pulseiras tilintantes nos braços..«Ainda tive aulas pontuais durante uns tempos, depois parei por falta de horários compatíveis com o meu trabalho e hoje não abdico das minhas manhãs de sábado na cozinha, a dançar feita louca», revela Alexandra a rir, o cabelo primorosamente solto pela cintura, sem receio de esconder que as danças indianas lhe despertam o mesmo desejo de se embonecar e lembrar as ondulações de braços, mãos e abdominais, as subtilezas do tronco e dos quadris, as deslocações em pontas dos pés e os meneios de cabeça que envolvem o corpo como um todo. «Dança oriental é dança oriental, afinal de contas, qualquer que seja a forma que assuma. Às vezes basta-me ver um gesto parecido para me soltar.».As origens da dança do ventre são controversas e nebulosas, ela evoluiu a partir de movimentos e estilos musicais de diferentes povos e pode, em última análise, ser considerada a dança clássica do mundo árabe, a meio caminho entre a criação individual e o folclore. Supõe-se que as raízes mais profundas remontem aos rituais de fertilidade das antigas civilizações de há cinco mil anos que veneravam a deusa Mãe: as mulheres acreditavam que o sangue divino do útero, se agitado pelos movimentos mágicos da dança, originava o estado de graça da maternidade e o ciclo das estações que regulava a época das colheitas, razão por que se concentravam na região pélvica e abdominal nas suas homenagens sagradas à deusa..Mais tarde, quando a vertente ritual foi desaparecendo e perdendo a sua função religiosa, a dança oriental tornou-se uma forma de lazer e progressivamente uma arte que cresceu na Índia, na Pérsia, na Grécia, mas sobretudo no Egipto, onde iria receber as influências culturais assíria, fenícia, sudanesa, líbia, turca, etíope, beduína e persa. A existência de grupos nómadas que viajavam pelo mundo e se iam estabelecendo em várias regiões, na sua maioria ciganos e artistas itinerantes, também contribuiu para a forte interculturalidade que caracteriza a dança oriental..Nos séculos XVIII e XIX, quando Napoleão Bonaparte invadiu o Egipto (em 1798) e o Ocidente se rendeu ao fascínio pelo Oriente e por aquelas bailarinas que sempre dançaram de mulher para mulher, movendo cada músculo do corpo com total controlo de si, a dança foi baptizada de danse du ventre, a misteriosa e inatingível dança do ventre. Ao mesmo tempo que os ocidentais mal podiam acreditar que barriga e anca fossem, afinal, assim tão flexíveis, muitas das bailarinas orientais optaram por acompanhar as novas tendências e passaram a integrar traços de modernidade como os véus, os decotes e os saltos altos. Ao longo dos anos a dança acabou por evoluir de modo diferente nos vários países (ainda que mantendo na sua essência o enigma da concepção da vida), cresceu a combater as ideias estereotipadas da mulher despida que enlouquece os homens e recuperou a imagem positiva do feminino profundo e belo do início dos tempos..«DANÇAR traz-me muita felicidade. Qualquer dança o faz, mas esta em especial pede que eu transmita tudo o que estou a sentir com a música através do gesto», revela Laura Moura, de 23 anos e uma experiência de sete em dança oriental, na qual se iniciou pela mão da professora Marta Dias e prosseguiu verdadeiramente envolvida sob a orientação de Carla B, que a treina e a incentivou a dar as suas primeiras aulas de nível iniciado no Espaço Mil Pétalas, no Prior Velho. «Tudo ali me ajuda a conhecer e a sentir melhor porque não me impõe barreiras, e cada dia que passa em que me apercebo de qualquer evolução é uma satisfação enorme.».Laura é designer de equipamento mas trocava de bom grado a secretária, o computador e o trabalho de criativa na fábrica por horas livres que lhe permitissem dedicar-se à dança oriental sem restrições. A amiga Mónia Cardoso, arquitecta de formação e praticante desde que descobriu a dança com a professora Sílvia, há seis anos, no Algarve, reconhece esta mesma vontade de progredir e ajudar outros a crescer com ela. «Costumo dizer que não ensino ninguém a dançar porque isso é expressão pessoal e sentimento, mas transmito a cultura árabe, ensino técnica, ajudo na auto-estima, corrijo a postura, esclareço dúvidas, saliento a parte feminina em cada uma de nós, motivo a união e ensino a “voar”, para que cada um possa ter a liberdade de criar por si», adianta..No seu caso pessoal, a dança aconteceu como no amor: apareceu-lhe quando menos esperava e encantou-a por ser algo que sentiu estar-lhe no coração. «Sei que estes movimentos ajudam muito a ultrapassar certos obstáculos a nível de personalidade e aceitação pessoal e adoro dar aulas quando as pessoas estão receptivas a aprender as bases», reitera Mónia, aproveitando para lembrar inúmeros outros benefícios que vão desde o estimular da memória, da atenção, da circulação sanguínea e da flexibilidade, à tonificação muscular, alívio de tensões, cólicas e problemas menstruais, aumento dos reflexos e distribuição equilibrada da energia a partir do centro do corpo..Questionadas sobre o papel do homem na dança oriental – sabendo-se que existem artistas masculinos que dançam e coreografam como poucos, ainda que esta continue a ser uma arte considerada feminina na sua essência –, as mulheres são unânimes em afirmar que existe lugar para eles também, logo que se resolvam a vencer o preconceito do género. «Não concordo que se diga que os homens que dançam são homossexuais por defeito, nem com a visão machista ocidental que conota a dança do ventre com desejo sexual, o que é muito triste», desfere Mónia, agradada com a elegância de gestos e o respeito demonstrado pelos professores egípcios com quem teve aulas. Laura Moura concorda: «Ao longo da história da dança oriental encontramos excelentes profissionais masculinos que dedicaram a vida a dançar, a ensinar e a coreografar e isso sempre foi comum na cultura árabe», aponta..É o caso de Mahmoud Reda, o mestre de 79 anos que influenciou toda a dança egípcia ao elevá-la à categoria de arte e tornou, assim, lícito tê-la como profissão. «Ele apoiou-se numa sólida formação em ballet clássico para fundar a primeira companhia de dança popular do mundo árabe – a Reda Troupe –, investigou a fundo as características musicais de cada região e desenvolveu movimentos e formas de dançar tipicamente masculinos», conta Carla B, que se prepara para tentar trazer Reda a Portugal pela quarta vez, depois do último workshop em Maio deste ano. Segundo ela, a sua importância é talvez melhor compreendida «se percebermos que o próprio conceito de dança egípcia não teria surgido se não fosse ele, que sem ele não existiria a dança oriental em grandes palcos, não existiria a dança da melaya, o falahi, a dança com cântaro ou o saidi». As modernas dançarinas do ventre seriam com certeza mais pobres na sua missão de espalhar alegria..Meneios de cabelo, punhais e espadas .Porque a dança oriental é influenciada por diversas zonas do Médio Oriente, cada qual com os seus povos e costumes, são muitos os ritmos árabes na música e os estilos de dança que se cruzam na definição final desta forma de arte. A passagem para o formato de palco ditou que vários elementos cénicos fossem incorporados, sobretudo no Ocidente..Candelabro Elemento egípcio habitual nos cortejos de casamentos para iluminar a passagem dos noivos, o candelabro é hoje usado como representação deste ritual social.Cântaro Simboliza o caminho que as mulheres faziam em busca de água e exige uma invulgar capacidade de equilíbrio.Espada Desconhece-se a origem do uso deste objecto, mas a bailarina precisa de recorrer a toda a sua calma na hora de equilibrar a espada nos ombros, cabeça, queixo, cintura, quadris ou coxas. O resultado é uma aura de mistério.Falahi Ritmo geralmente tocado em danças folclóricas egípcias, a representar os camponeses que aliviam o peso das colheitas cantando e dançando em grupo.Khaleege Dança genérica dos países do golfo Pérsico, caracteriza-se pelo uso de uma bata comprida e fluida e pelo meneio intenso dos longos cabelos femininos.Melaya Dança em que as mulheres dançam com um pano (meleah) enrolado ao corpo, em representação do quotidiano portuário de Alexandria.Punhal Representa uma variação da dança com espada, embora apelando mais aos sentimentos do que à exibição técnica, e tradicionalmente era uma reverência à deusa Selkis, a rainha dos escorpiões, que simbolizava a morte e a transformação.Saidi Dança originária do Sul do Egipto que pode ser dançada com um bastão (no Ocidente substituiu-se por uma bengala).Véus De origem norte-americana, a dança dos véus é bastante recente e muito popular. A bailarina usa-os em vários passos onde necessita de se mostrar e emoldurar, sem revelar demasiado do corpo ou do rosto..Alguns locais onde praticar a dança oriental .Espaço PazPazesProfessora: Charlotte BispoMorada: Rua Antero de Quental, 155, PortoContactos: 9381816 6 ou através do e-mail om.pazpazes@gmail.com.Espaço Mil PétalasProfessora: Laura MouraMorada: Praceta Agostinho da Silva, 1-B, Prior Velho, LouresContactos: 211561754 / 967002068.Ateneu Comercial de LisboaProfessores: Elsa Sham’s, Mohamed Elmasseri, Estefânia Mahin, Telma NurrMorada: Rua Portas de Santo Antão, 110, LisboaContactos: 212443762 / 964781886 / 933599978 ou através do e-mail planetadanca@gmail.com.Associação Portuguesa de Dança do Ventre (APDV)Professora: Vânia CezarioMorada: Rua Pinto Bessa, 340, Porto-CampanhãContactos: 968623293.Club HouseProfessora: Carla BMorada: Av. da Peregrinação, Lote 4.41.1, Parque das Nações, PortelaContactos: 218953100