Um dia, numa aula com os reclusos do Estabelecimento Prisional de Castelo Branco, a coreógrafa Filipa Francisco lembrou-se de experimentar uma improvisação a partir do bilhete de identidade. Os presos olharam-na sem saber o que fazer. "Mas", começou a dizer um deles, "os billhetes de identidade são a primeira coisa que nos tiram quando aqui entramos". Isto foi logo no começo, em 2001. ."Nunca me posso esquecer que estou num estabelecimento prisional com regras muito específicas, de segurança e de horários. Isso não muda o meu trabalho mas impõe-me algumas condições", explica a coreógrafa que é a principal responsável pelo (R)existir, projecto de formação artística levada a cabo pelo Centa - Centro de Estudos de Novas Tendências Artísticas no Estabelecimento Prisional de Castelo Branco. A ideia inicial era ter um atelier só com três sessões para um grupo de mulheres. Mas a coreógrafa apaixonou-se pelo projecto. Voltou no ano seguinte. Depois vieram os homens, numa sala separada. O atelier transformou-se num curso, com aulas durante cinco meses. Durante o ano inteiro. .No final de cada curso, há um espectáculo, de teatro ou dança, que é apresentado aos outros presos. "Fazer o espectáculo é importante porque temos de ter metas. Há esta necessidade de ser observado e reconhecido, como se só assim o trabalho estivesse finalizado", explica Filipa Francisco. Mas adverte: "Não estamos só a fazer uma peça. Estamos a trabalhar numa coisa que tem o aspecto de uma peça mas que vai muito para além disso.".Filipa planeia as aulas na prisão como quaisquer outras. Imagina exercícios "simples e divertidos" para ajudar os inexperientes participantes a tomarem consciência do seu corpo. As primeiras sessões são as mais complicadas pois os reclusos têm de aprender a comportar-se num contexto novo. "É preciso que o grupo aprenda a funcionar como grupo, que respeite os silêncios. São jogos de confiança. Criamos espaços de liberdade de criação e imaginação mas com regras. Não se podem atrasar, não podem desistir a meio da aula, têm que decorar o texto." Há sempre muitas desistências..Os que chegam à apresentação final são os resistentes de que fala o título do projecto. São os que ensaiam na cela, sobrevivem à chacota geral, sentem prazer em representar. Este ano, dos 20 inscritos iniciais, restam apenas oito. Dois homens e seis mulheres. "São uns corajosos", diz, orgulhosa, Filipa Francisco. Hoje, às 16.00, vão subir pela primeira vez a um palco de verdade. E logo um dos palcos principais do país. O espectáculo chama-se Nus meios e é com ele que se encerra o ciclo "Como Eu e Tu", no Teatro Camões, emLisboa.