Da injúria à dúvida: afinal, de onde eram as "genéricas" senhoras?

Crónica de assuntos de Justiça. "Os tribunais são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo"
Publicado a
Atualizado a

Num país dominado pela alta criminalidade, não admira que, de quando em vez, os tribunais queiram desenjoar das corrupções, tráfico de influências, participação económica em negócio e afins, procuran-do resolver litígios mais prosaicos. Este é, aliás, um bom eufemismo para o que a seguir vai ler. Tratando-se o Diário de Notícias de um jornal centenário, convém já advertir os leitores para a linguagem quiçá (vamos presumir a inocência) obscena ou de muito mau gosto.

Certo é que no banco dos réus nem sempre se sentam uns senhores engravatados, barba feita, fato caro. Por incrível que possa parecer, o povo também é julgado. E foi precisamente o que aconteceu a "Maria", absolvida pelo Tribunal de Vila Real (256/10.0GCVRL) por um crime de injúria contra a sua irmã, "Antónia". Tudo porque a 18 de julho de 2010, "Antónia", sentada num banco de pedra na companhia de mais três mulheres de provecta idade, resolveu disparar alto e bom som: "Ó putas do rio Doiro ide lavar ao Mondego, se não tiverdes sabão tirai-o do cu com o dedo" e "ó puta que roubas homens casados".

Enfurecida, "Maria" respondeu ao desafio lançado pela irmã: "puta", "bandalho", "tu precisas dum macho para aqui" (ao mesmo tempo que apontava com a mão em direção à sua área genital), "andas cheia de vício". Depois da virilidade verbal, "Maria" não se esqueceu dos seus direitos de personalidade e apresentou uma queixa-crime contra a irmã, imputando-lhe um crime de injúrias. Porém, em primeira instância, "Antónia" foi absolvida, o que motivou um recurso para o Tribunal da Relação do Porto. Disse "Antónia" que após ouvir tais palavras "sentiu-se profundamente humilhada na sua honra e consideração, o que lhe causou sofrimento moral e arrelias, pois é pessoa educada, gozando de elevada consideração social".

Por sua vez, a arguida alegou que as suas palavras foram motivadas pelo facto de a sua irmã ter dito à sua neta de 11 anos para não falar "à avó ( "Antónia") e que ela "precisa é de um macho"", o que deixou a arguida bastante exaltada.

Pedro Vaz Pato e Eduarda Pinto e Lobo foram os juízes desembargadores a que a fortuna destinou o recurso deste caso nada fácil de analisar, já que a prova estava toda nas declarações da arguida, da assistente e das testemunhas. Sendo que, como é da experiência comum, quem ouve um conto, acrescenta-lhe um ponto. Foi precisamente para fixar o melhor possível a prova testemunhal, que os desembargadores realizaram um autêntico trabalho de ourives para deslindar o que meia dúzia de velhotas afirmaram ter presenciado.

Uma, por exemplo, disse que a expressão "ó putas do rio Doiro ide lavar ao Mondego, se não tiverdes sabão..." é um ditado antigo usado na freguesia. Outra mulher, de 82 anos de idade, confirmou que antigamente na fre-guesia se dizia a expressão referida, com a menção "Ó putas do rio Douro" e não como referiram outras testemunhas "Ó putas do Rio Tinto" ou "Ó putas do Bairro Alto", como tinham referido duas outras mulheres.

Depois de ouvir - presume-se - vezes sem conta as gravações dos depoimentos no julgamento de primeira instância, os juízes desembargadores depararam-se com uma importante dúvida: "Mas afinal as genéricas "putas" são do Rio Tinto, do Bairro Alto ou do Douro?" Como diria José Pacheco Pereira, esta é que é a questão que os venerandos desembargadores tiveram que dirimir. Sim, de onde eram as tais "genéricas". A análise da prova levou a uma conclusão: "Faz mais sentido, em face da área geográfica em que se localizam os factos que sejam do rio Douro, como diz a arguida, que refere nestes termos o dito popular de outros tempos".

É então que entra o Direito, o curador de todos os males contemporâneos, sejam eles políticos, empresariais, futeboleiros e mais corriqueiros. Por um lado, referiram os juízes, o crime de injúria prevê que "quem injuriar outra pessoa imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras ofensivas da sua honra ou consideração, é punido com pena de prisão até três meses ou com pena de multa até 120 dias".

Mas, no caso em concreto, tudo pareceu apontar para uma retaliação, sendo que esta, não eliminando por completo o crime inicial, pode ajudar a fixar a pena, tendo em conta a gravidade do crime e a extensão dos danos. "O direito à honra não pode perder-se por comportamentos indignos do seu titular, designadamente, por este ter respondido a uma injúria com outra injúria. Uma tal situação pode, porém, justificar a dispensa de pena", concluíram os desembargadores. "Antónia" foi dispensada da pena de prisão, mas não escapou ao pedido de indemnização (valor não disponível no acórdão).E tudo por causa de umas genéricas... não vale a pena repetir.

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt