Da censura de Estado à criminalização: a violência e o medo

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A censura de Estado constitui sempre uma forma de violência. A limitação da liberdade de expressão mata o pensamento e o sentimento, que perecem sem a sua manifestação linguística e imagética. O Estado Novo montou uma máquina administrativa para aplicar a censura a todas as formas de expressão do pensamento e do sentimento. Limitava a informação disponível e portanto o desenvolvimento do nosso raciocínio, carecíamos de instrumentos fundamentais para compreender o mundo em que vivíamos. Limitava evidentemente a capacidade de criação e de inovação. O objetivo era exatamente esse, encerrar-nos no estreito molde ideológico, político e sociológico delineado pelo Estado Novo. Era em si uma forma de enorme violência psicológica, consolidada mediante um colete de forças ideológico-político imposto no ensino, de que o livro único era o produto principal. As censuras sociais e familiares tendiam a inserir-se neste monstruoso edifício. O medo era uma consequência inevitável e essencial: medo da ostracização, da perda do emprego, da prisão e da solidão. Induzia a obediência e a submissão a uma autoridade inquestionável.

A imprensa periódica estava submetida à censura prévia, associada a cortes e suspensão da edição, podendo até proibir-se a sua circulação definitivamente. Se editar um semanário como o Expresso, da ala liberal do regime, era tarefa ciclópica e ameaçava a sua sobrevivência como conta F. Balsemão, imagine-se o que era editar um jornal diário, uma infernal corrida contra o tempo (1) . A rádio e a televisão tinham um regime especial de censura interna. As manifestações artísticas, teatro, bailado, revista, cinema careciam igualmente de visto prévio da censura de Estado. As exposições eram também vigiadas e eventualmente encerradas, como aconteceu em casos celebres do domínio artístico e também documental (exposição "Os Livros escritos por mulheres" de Maria Lamas). Uma auto-censura preventiva presidia à escrita e a todas as manifestações publicas, embora se tentasse transmitir nas entrelinhas mensagens "encriptadas".

Os livros estavam submetidos a uma censura prévia e a censura à posteriori, ainda mais perversa nos seus efeitos. Conduzia igualmente à auto-censura dos autores e das autoras, raramente se escreve para deixar o texto na gaveta, o que se repercutia naturalmente nas decisões das próprias editoras. O risco de apreensão da edição de um livro, um prejuízo​​​​​​​económico, induzia um comportamento preventivo. Mas nem por isso se deixou editar milhares de livros que foram proibidos, ou seja de autores e autoras e casas de edição que ousaram arriscar. Ao desafiar o sistema, colocavam em evidência os limites do funcionamento do aparelho de Estado e a sua violência. Pode dizer que constituiu uma atitude de denúncia e crítica do regime político.

A censura tem sido um objeto de diversos estudos e exposições desde o 25 de Abril, no contexto de várias instituições, Assembleia da República, Câmara Municipal, Comissão do Livro negro sobre o fascismo (Presidência do Conselho de Ministros), entre outras. Recentemente duas exposições permitiram-nos tomar contacto direto com duas dimensões até agora quase inacessíveis, o arquivo da censura à imprensa escrita e a biblioteca da própria Direção Geral da Censura. "Proibido por inconveniente" , frase recorrente nos pareceres da censura sobre a seleção de obras proibidas expostas na exposição assim designada, constituída por documentos recolhidos por Pacheco Pereira no arquivo Ephemera. Também se puderam ver diferentes cortes da imprensa periódica e descobrir o boletim semanal, resumo desses cortes. A política de informação editado pela Comissão do Livro Negro sobre o fascismo (1980) já continha reproduções de alguns documentos deste teor, aqui porém presentes em maior escala. Fica-se com o desejo de no futuro poder analisar toda esta documentação, sentada a uma mesa. Inevitavelmente interrogamo-nos por que motivo esta valiosa documentação não se encontra no Arquivo Nacional, onde está desde longa data a documentação da Inspecção Geral dos Espectáculos e do Secretariado Nacional da informação (SNI), que coordenou o conjunto destes organismos desde 1944 e dependia diretamente do Presidente do Conselho de Ministros, cujo arquivo também se encontra na Torre do Tombo.

Entretanto abriu uma exposição sobre a Biblioteca da Censura, na Biblioteca Nacional. Este núcleo bibliográfico recolhido nesta instituição em por iniciativa do então diretor Oliveira Marques (1974-76) , só foi integrado no catálogo geral e colocado à leitura trinta anos decorridos, em 2009 sob a direcção de Jorge Couto. E só agora pela 3 primeira vez é revelada ao publico a sua existência. A interferência da censura no próprio acesso à leitura também só agora é revelada: o ficheiro das obras proibidas de ir à leitura tem uma dimensão surpreendente. As bibliotecas recebiam uma lista de obras, que embora circulassem no mercado, eram proibidas de ir à leitura nestas instituições públicas.

A Censura era exercida mediante uma poderosa máquina administrativa, cujos contornos sofreu diferentes alterações administrativas durante o regime de Salazar-Caetano, sendo dirigida quase exclusivamente por militares, com frequência na reforma. Os seus braços executivos eram a polícia política e a máquina judicial. Em conjunto constituíam um instrumento fundamental de governo do país, e em certos casos membros do governo intervinham diretamente por seu intermédio. Alguns casos, que tiveram uma dimensão dramática, exemplificam-no com toda a clareza. Representaram igualmente um agravamento da repressão, pela passagem do patamar da censura dos livros para o da criminalização dos escritores e das escritoras.

O caso que melhor ilustra esta articulação e a mudança decorrente dela é o de Sttau Monteiro e a Editorial Minotauro. Fundada no início dos anos 60, a Minotauro já em 1964 tinha sofrido a proibição de uma das obras da sua colecção de teatro, um auto para Jerusalém de Mário Cesariny. No parecer do capitão da censura isso impunha-se por ser "absolutamente inaceitável, não só pela irreverência, em matéria religiosa ou de fé, como pela chocante intromissão satírico-política no tema filosófico-moral que o autor se propôs". Dois anos mais tarde, a situação repete-se com​​​​​​​ desenlace dramático, com a publicação do livro com duas peças de teatro de Luis Sttau Monteiro. Em 2 peças em um acto: A guerra Santa e A Estátua, L. Sttau Monteiro atingia dois alicerces ideológicos e políticos fundamentais do Estado Novo: a concepção imperialista de Nação e a aliança entre o poder militar e político. A editora foi encerrada e o autor foi preso. O desenrolar dos acontecimentos é revelador da violência do conjunto articulado da máquina repressiva, censura, PIDE, Ministérios da Defesa e do Interior.

A 18 de Novembro de 1966, o livro foi apreendido pela PIDE. A editora foi encerrada por ordem da Direção dos Serviços de Censura, destruído totalmente o seu património mediante uma inundação provocada, e assaltada a tipografia onde já se preparava a segunda edição. Salvaram-se 1000 exemplares que ainda se venderam, e a que os alfarrabistas designam de edição clandestina. Decorridos cinco dias, a 23 de 4 novembro de 1966, um ofício do general Venâncio Deslandes, secretário adjunto da Defesa Nacional , dirigido ao Ministro do Interior, à Presidência do Conselho e ao diretor da PIDE, declarava que a primeira peça do livro, A guerra Santa, representava um "ultraje e injúria muito graves das instituições militares", e a guerra não-identificada era uma alusão à "agressão que está a ser perpetrada contra Portugal nas províncias ultramarinas". Solicitava-se que o caso fosse severamente punido, expressando desagrado por outras publicações pacifistas e contrárias ao espírito vigente, terem sido apenas objeto de "simples apreensão". No dia seguinte, cerca das 10h da manhã, Luís Sttau Monteiro foi preso no escritório em que trabalhava. O autor foi acusado de crime militar, tratado como preso militar, sendo-lhe por isso negado o Habeas corpus. Apreciado o seu caso num tribunal militar, os juízes não encontraram fundamento para a acusação. Entretanto tinham decorridos 6 meses de prisão. O editor, Bruno da Ponte, ficou numa situação​​​​​​​ catastrófica e acabou por se exilar, apenas regressando depois do 25 de Abril.

A conjuntura da guerra contra a independência das colónias africanas esteve igualmente na origem do encerramento da Sociedade de Escritores no ano anterior, após a atribuição do prémio da novela a Isabel da Nóbrega pelo romance Viver com os outros e a Luanda do escritor angolano Luandino Vieira, então preso no Tarrafal. Foi a inclusão deste último no prémio que levou a destruição da sede da SPE, seguido do seu encerramento e à prisão de três dos membros do júri deste concurso, Augusto Abelaira, Manuel da Fonseca e Alexandre Pinheiro Torres.

Uma outra vertente essencial da construção ideológica e política do Estado Novo envolvia o relacionamento interclassista. Numa informação da PIDE sobre o livro Bichos de Miguel Torga, em que se salienta ter o autor " forte poder de aceitação por leitores deficientes de recursos espirituais", desaconselham-se estes contos por fomentar o desrespeito social e como tal deve ser proibido em "agremiações operárias" (1953, in exposição BN). Outra vertente fundamental do modelo cultural desta época reside na concepção da vida familiar e sexual e da função da mulher. Nestes anos conturbados das duas últimas décadas do Estado novo, dois processos provocados por livros escritos por mulheres perturbaram a estabilidade desse modelo. Natália Correia e alguns dos colaboradores da Antologia de Poesia Erótica e Satírica - dos cancioneiros medievais à atualidade, foram objeto de um processo iniciado em 1966, sendo condenados ao fim 5. de sete anos por " consciente e pública ofensa do pudor, da decência e da moralidade pública". Idêntico tratamento tiveram os organizadores de um livro do Marquês de Sade no mesmo ano. E as três Marias (1972), viram o seu livro proibido e aberto um processo-crime, apenas encerrado devido ao 25 de Abril.

O Estado Novo quis impor um molde cultural e político durante os 48 anos da sua existência: os criadores e as criadoras, produtores e produtoras de obras que vieram a ser proibidas, tais como livros, filmes, músicos e outras formas de arte, ousaram confrontá-lo, escolhendo essa forma de resistir. Merecem a nossa homenagem pela sua contribuição para a nossa cultura e para a democracia.

(1) Prefácio a Castanheira, José O que a censura cortou, Expresso, 2009

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