Da "basbaquidade dos homens" e da "bondade" das mulheres: feministas portuguesas de há três séculos

Do século XVIII português, quando talvez mais de 90% das mulheres era analfabeta, o acesso à escola lhes era vedado, os maridos tinham licença legal para lhes bater e até para as matar se adúlteras, chegam vozes femininas em defesa dos direitos das mulheres
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"Minhas leitoras: muitos anos há que vejo correr um papel impresso, que se intitula Malícia das Mulheres, sem que até ao presente houvesse uma que se dispusesse a contradizê-lo com uma justa Apologia da nossa notória inocência. Pareceu-me inequidade que se fossem multiplicando à nossa notória revelia, contra nós, tantas sentenças quantas são as aprovações que aquele famoso Libelo acha entre as pessoas do povo. E por isso, agora me resolvi a contrariá-lo e a reconvidá-lo. Suponho que este arbítrio vos será tão grato quanto aquele papel vos será molesto; e que não deixareis de convir em que eu, como pessoa tão conjunta e igualmente interessada, me arrogue o ofício de vossa procuradora."

Estas palavras têm pelo menos 303 anos. Pertencem à introdução de um "folheto de cordel", considerado o mais antigo escrito impresso, de que existe conhecimento, atribuído a uma mulher portuguesa em defesa das mulheres.

Trata-se de Bondade das Mulheres Vendicada e malícia dos Homens Manifesta; Papel métrico, e apologético, em que se defende a femenina innocencia, contra outro em que injustamente se argüe a sua maldade, com o título Malícia das Mulheres. Obra de uma dúzia de folhas, apresenta-se como resposta a poema Malícia das Mulheres, atribuído a Baltasar Dias, autor do século XVI, o qual terá provavelmente circulado pela primeira vez em 1540, tendo sucessivas edições. É à datada de 1713, também sob a forma de "folheto de cordel", que esta Bondade das Mulheres, cuja primeira edição é de 1715, responde.

O poema de Baltasar Dias, poeta madeirense, inscreve-se numa tradição de escritos misóginos que remonta à antiguidade, encenando o discurso de um homem que dá conselhos a outro sobre os perigos do casamento. Exemplifica com o caso de duas mulheres que se aliam para enganar e ridicularizar os maridos e, citando a Bíblia e vários autores clássicos que criticaram as mulheres, conclui que estas são "seres imperfeitos." Quem o contradiz assina-se Paula da Graça, "natural da Villa de Cabanas" (Cabanas de Tavira), "assistente nesta corte", e, ponto a ponto, refuta as posições de Dias.

"A alma não é masculina nem feminina"

"Na perspetiva de Paula da Graça", explica a investigadora e professora associada da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa Vanda Anastásio no texto Querelle des Femmes in 18th Century Portugal (A Querela das Mulheres no Portugal do século XVIII), "o exemplo apresentado em Malícia das Mulheres só demonstra a "basbaquidade" (tontice) dos maridos enganados. Desvaloriza os truques usados por elas junto dos maridos, considerando-os brincadeiras cómicas. À lista de defeitos femininos elencada no texto de Baltasar Dias, contrapõe as maldades que os homens infligem às mulheres (ciúme, desprezo, infidelidade, crueldade, severidade, ingratidão), seguida por uma lista de virtudes feminina."

Paula da Graça argumenta também, escreve a investigadora, que "o heroísmo é frequente nas mulheres e a alma não é masculina nem feminina", assim como que, "se Eva tentou Adão, Maria redimiu toda a humanidade; só uma mulher ficou do lado de Cristo quando foi condenado por Pilatos; se às mulheres fosse permitida a mesma educação que aos homens, seriam tão aptas como eles a participar na vida intelectual; e por aí fora."

Os argumentos usados por quem assim se assinou demonstram, prossegue Vanda Anastásio, que estava ciente da existência de um debate, na sociedade europeia, sobre o estatuto da mulher. Esse debate, que ficou conhecido como Querelle des Femmes [Querela das Mulheres), ter-se-á iniciado com a francesa Christine de Pisan, referida como tendo nascido em Veneza em 1364, filha de um astrólogo da corte de Carlos V de França.

"Há um romance anónimo francês, o Roman de la Rose (século XIII/XIV) em que o autor diz que as mulheres são um homem incompleto. Pisan, que era percetora de umas crianças na corte, inicia a dado momento correspondência com um contemporâneo na qual diz que não aceita a visão do Roman de la Rose e isso dá origem a uma troca de cartas que ela depois porá em circulação, em cópias manuscritas, um método de difusão muito comum na altura. Essas cartas ficaram conhecidas como a Querelle des Femmes, e iniciam essa discussão."

Em Portugal, se é possível, sublinha esta investigadora, identificar alguma produção escrita de portuguesas desde o século XV com "esporádicas atitudes de resistência ao discurso misógino dominante, não temos textos portugueses escritos por mulheres que possam ser inseridos no contexto da "querela das mulheres" antes do século XVIII."

"Doutoras, soberbas e ociosas"

Autora de "Feminism" in Portugal before 1800 ("Feminismo" em Portugal antes de 1800, capítulo do livro A New History of Iberian Feminisms, editado pela Universidade de Toronto em abril), Vanda Anastásio identifica Paula da Graça como "a primeira voz" portuguesa feminina nesse debate. É com ela - pelo menos tanto quanto sabemos -- que se inaugura no país o argumentário da tradição intelectual dessa discussão desenvolvida ao longo dos séculos, que se caracteriza por "propor uma distinção entre os elementos correspondentes ao sexo e os correspondentes ao género e, consequentemente, uma reorganização do conhecimento filosófico e das ideias sobre as mulheres a partir de um ponto de vista feminino", por usar "exemplos de mulheres ilustradas e poderosas do passado para evidenciar as limitações impostas às mulheres no presente" e por assumir "uma posição a favor da educação das mulheres, apresentando-as como seres humanos capazes de autonomia no processo de aprendizagem, na criação de conhecimento, e no uso consciente da razão."

Isto numa época na qual a lei em vigor - as Ordenações Filipinas -- permitia "ao marido que castigasse fisicamente a mulher (além do criado, discípulo, filho ou escravo) desde que não utilizasse armas", e que em caso de adultério "comprovado" matasse, sem qualquer castigo, a mulher e o seu cúmplice (desde que não fosse "pessoa de maior qualidade", ou seja, um nobre).

Uma época na qual as mulheres estavam interditadas de participar nas causas da justiça sequer como testemunhas (quanto mais juradas ou juízas - juízas que, já agora, só poderão ser neste país mais de 250 anos depois, após 1974), era comum casarem-se meninas com homens velhos - na aristocracia, já que o povo casava pouco e tarde - e a primeira escola para raparigas (mais uma vez, da aristocracia), o Colégio da Visitação, ainda não fora criada pelo teólogo e matemático Teodoro de Almeida, que aliás só nasceria em 1722.

Uma época na qual, dizem-nos os relatos de viajantes estrangeiros citados por Ana Vicente em As Mulheres Portuguesas Vistas por Viajantes Estrangeiros para caracterizar as mulheres do século XVIII, "pouca importância é dada à educação das raparigas." Aliás, frisa Ana Vicente, "um dos textos do século XVIII menciona que as mulheres que quisessem estudar eram criticadas."

Datado de 1784, e identificado como tendo autoria de um francês -- Cartas de hum Viajante Fráncez a hum seu Amigo Rezidente em Paris, sobre o Caracter e Estado Prezente de Portugal --, o texto em causa é feroz. "Poucas são as mães que façam aprender suas filhas a ler e escrever com perfeição, a bordar [...], a tocar alguns instrumentos, e enfim que façam dela uma mulher estimável. [...]. Esta falta de Educação faz que as Senhoras Portuguesas, que a natureza formou muitas belas, se façam pela falta de arte e de conhecimentos, muito desagradáveis e insípidas para a sociedade. [...] E assim rara será a Portuguesa que faça mais do que vegetar: vivem como as plantas e como elas morrem. [...] Apenas as tirais do costumado entretenimento e conversação sobre modas, enfeites e defeitos das suas conhecidas e amigas, pontualmente perdem o uso da fala. [...] É bem verdade que na Corte e em outras principais Cidades e Províncias de Portugal, se acham muitas senhoras de todo o merecimento, que se aplicam às Belas-Artes, que sabem línguas e que fazem muito amável a sua Companhia. Porém estas ainda são muito raras e mais vulgares são as que vos digo. [...] Apenas uma mulher quer, neste Reino, elevar-se acima das suas companheiras, aplicando-se às Artes e Ciências, [...] começam a proclamá-la ironicamente com o título de Doutora, e a dizer que é uma soberba, uma ociosa e que o tempo que gasta sobre os livros, melhor fora o gastara na sua roca e no governo de sua casa."

Homens tiranos, mulheres escravas

Talvez esse cerco às mulheres que ousavam instruir-se - mais de um século depois, em 1890, o primeiro recenseamento que inquiria da literacia apurava quase 80% de analfabetos, percentagem que era ainda mais elevada nas mulheres -- seja uma das razões pela qual nada sabemos de Paula da Graça além do que está no folheto: o seu nome, local de nascimento e a referência à corte.

Betina dos Santos Ruiz, em A Retórica da Mulher em Polémicas de Folhetos de Cordel do Século XVIII, dissertação de mestrado (Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2009), põe várias hipóteses sobre a sua identidade. Pode ter sido, aventa, "aia da rainha D. Maria Ana de Áustria" (mulher de D. João V) - não só assina "assistente nesta Corte" como as edições do folheto de 1741 e 1743 foram impressas na oficina tipográfica régia - pode ter sido uma freira ou pode ter usado um pseudónimo (até porque, para publicar um livro, naquela época, uma mulher casada precisava da autorização do marido).

E pode - há sempre essa hipótese - não ter sido uma mulher mas um homem assinando sob pseudónimo feminino, mesmo se, à época (e mesmo já no século XIX, como nos demonstra o exemplo das irmãs Brontë, entre muitos outros), o comum era o contrário.

Mas Vanda Anastásio crê pouco numa autoria masculina. "Também há homens a participar no debate sobre a educação das mulheres, defendendo-a, mas nenhum defende o mesmo que as autoras identificadas como mulheres que escreveram sobre os seus direitos." Aliás, sucedeu o mesmo nos outros países: "Karen Offen [historiadora americana], no seu estudo comparativo dos feminismos europeus, encontra o mesmo tipo de discurso noutros países: a maioria dos homens reformistas do iluminismo via a maternidade, deveres de esposa e a religião como os papéis "naturais" adequados às mulheres, independentemente do estatuto social, e invocava-os como o motivo essencial para educar as mulheres. Defendiam simultaneamente a importância da educação das mulheres e de não as deixar ir além de uma certa fronteira."

Diferente é apesar de tudo o português Matias Aires, que em 1752, em Reflexões sobre a Vaidade dos Homens, defende que "todos os homens nascem iguais à excepção dos soberanos". Denuncia, narra Vanda Anastásio, "as dinâmicas de dominação entre homens mas também entre homens e mulheres, comparando relações de género a tirania e considerando que o estado de sujeição em que os homens mantêm as mulheres se assemelha à escravatura." E, tendo tido uma irmã metida num convento, "ataca o hábito de encerrar meninas em conventos para manter as fortunas das famílias intactas."

Precisamente, essa irmã de Matias Aires, Teresa Margarida da Silva e Orta, assina no mesmo ano, 1752, sob o anagrama Doroteheia Engrácia Tavareda Dalmira, a novela Máximas de Virtude e Formosura. Trata-se de uma narrativa passada na Grécia antiga, na qual as protagonistas são mulheres cultivadas que atacam a injustiça da condição da mulher e protestam contra a sujeição da mulher a famílias que as sacrificam em função dos seus interesses.

Porém, apesar de ser um texto geralmente apodado como feminista, não chega a sê-lo, considera a professora da Universidade de Lisboa. "Tem frases como "a natureza deu aos homens mais força e às mulheres mais subtileza de espírito". Ou "temos igualdade de almas e o mesmo direito aos conhecimentos necessários." Mas ao mesmo tempo defende que a educação seja disponibilizada às mulheres como meio de evitar a ignorância mas não a todas; e mesmo as mulheres da nobreza não devem fazer profissão da ciência e não têm a obrigação de ser cultas.

"Critica os pais que, cegos pela avareza, obrigam as filhas a casar com homens mais velhos, adúlteros, preguiçosos e violentos, mas elogia a obediência das raparigas que são forçadas a casar, assim como a bondade da "natureza feminina" que lhes permite cuidar dos maridos mais desprezíveis. Ataca a repressão das mulheres mas não imagina uma diferente ordem das coisas. A dominação das mulheres pelos homens é apresentada como inevitável, por ter raízes no ato da criação. Assim como a desigualdade entre as pessoas: a igualdade é apresentada como uma condição perigosa, própria de bárbaros, e a desigualdade, dependência e sujeição pilares fundamentais de uma sociedade civilizada. Defende as mulheres de forma seletiva, condicionada pelas visões tradicionais de privilégio e classe."

Feminismo seletivo, conclui Vanda Anastásio. "À excepção de Matias Aires, todos os participantes no debate pró mulher parecem ter uma visão compartimentalizada da sociedade onde não existe espaço ideológico para pensar em termos igualitários. É como se a impossibilidade de imaginar formas de governo e organização social diferentes do sistema baseado nas classes e poder centralizado da monarquia absoluta condicionasse a possibilidade de imaginar uma outra ordem do mundo."

"Quanto mais para trás maior o silêncio"

Normal, de resto, que os autores do século XVIII, criados numa sociedade ferozmente hierarquizada e ritualizada, embebida em preceitos religiosos e sem conhecerem ainda um governo que não o de reis por "direito divino" (as revoluções americana e francesa, a partir de 1775 e 1789, ainda não viraram o mundo de pernas para o ar), não consigam imaginar uma em que toda a gente tenha, pelo menos por princípio legal, as mesmas oportunidades e a mesma dignidade.

Tanto quanto é compreensível, mesmo se frustrante, que a existência de mulheres que há três séculos, em Portugal, ergueram a voz contra a desigualdade de género seja tão desconhecida.

"A dificuldade de recuperar as vozes das mulheres portuguesas que assumiram posições feministas no século XVII", contextualiza Vanda Anastásio, "deve-se não só ao facto de, até recentemente, a historiografia ter-se quase exclusivamente preocupado em veicular as vozes masculinas dominantes. É também consequência das várias estratégias de disfarce usadas pelas próprias mulheres, que tentaram viabilizar as suas intervenções no campo intelectual mantendo um perfil modesto e discreto, escondendo as suas identidades com pseudónimos ou com o anonimato ou distribuindo cópias manuscritas dos textos." Acresce que "a colaboração de mulheres em jornais e outras publicações era quase totalmente inexistente em Portugal neste período - outra circunstância que contribui para a sua invisibilidade"; "outro factor importante no condicionamento do acesso dos historiadores ao discurso masculino é o facto de que apenas uma pequena parte das mulheres portuguesas do século XVIII teve o seu trabalho impresso."

Assim, lamenta, "houve decerto imensa coisa que se perdeu, em Portugal e no resto do mundo. Muitos manuscritos - as mulheres privilegiavam muito essa forma de difusão - não terão chegado até nós, muitos escritos terão sido censurados (a Inquisição e, a partir de 1768, a Real Mesa Censória, tinha de aprovar tudo o que era publicado e os que vinha das mulheres era mais escrutinado)."

A própria investigadora, de 60 anos, reconhece que a descoberta das "feministas" portuguesas de setecentos foi para ela uma surpresa. "Fiz a minha tese de doutoramento sobre o Pêro Vaz de Caminha, e depois trabalhei sobre Pedro Bingre, amigo de Bocage. E recebi um convite de uma equipa que estava a fazer uma edição crítica das cartas da marquesa de Alorna [Leonor de Almeida Portugal, 1750/1839], da qual, confesso, nada sabia. Dei-me então conta de que esta mulher, que viajou imenso, teve uma vida muito aventurosa, sabia não sei quantas línguas e escreveu coisas interessantíssimas era, sempre que se falava dela na historiografia, descrita como sendo uma excelente esposa e ótima mãe, algo que nunca se diz dos homens. E comecei a olhar para trás. E quanto mais olhava para trás maior era o silêncio."

Decidiu então, com Teresa Sousa Almeida, investigadora da Universidade Nova, ir aos arquivos "a ver o que se descobria". Um dos resultados de seis anos de investigação, desde 2007 a 2013, com financiamento da Fundação da Ciência e Tecnologia, e paralelamente, entre 2009 e 2013, no âmbito de um projeto europeu, foi o livro Uma Antologia Improvável - A Escrita das Mulheres (séculos XV a XVIII), publicado em 2013 pela Relógio d"Água.

Gertrudes de Jesus arrasa Amador do Dezengano

Mas, apesar de o simples facto de escrever nessas épocas fazer das mulheres em causa pioneiras e transgressoras, rebeldes face ao jugo que as quer manter, como lembra Vanda Anastásio, "na tradição de São Paulo, caladas na igreja e portanto na vida", poucas têm um discurso estruturado sobre o estatuto da mulher. E se Paula da Graça é a primeira, Gertrudes Margarida de Jesus, em 1761, é a segunda. E maior referência desse "feminismo" que desponta no século XVIII. Como a sua antecessora, usou o folheto de cordel como meio e como ela fê-lo para responder a um outro escrito, também em folheto, que atacava as mulheres.

O diálogo que trava com o seu contendor, um anónimo autor de Espelho Crítico, no qual claramente se vem alguns defeitos das Mulheres, fabricado na loja da verdade pelo Frei Amador do Dezengano, que póde servir de estimulo para a reforma dos mesmos defeitos, tem momentos de quase contemporaneidade. Como quando refuta a menoridade das mulheres e a sua incapacidade para cargos públicos ou quando diz, numa antecipação daquilo a que hoje damos o nome de "desnaturalização" do dispositivo sexista: "Isto nos faz refletir sobre a estranheza de nossos próprios costumes, ainda que os consideremos normais por estarmos habituados a eles."

As suas duas "cartas apologéticas" (expressão cunhada por Padre António Vieira) Em Favor e Defensa das Mulheres são também um modelo de sarcasmo elegante. Apesar de pretender humildade, alardeia conhecimento de diversas obras e em várias línguas, chegando mesmo a propor emprestar ao contendor um livro que este pode não ter: "Peço a V.C. o queira ver e, se o não tem, como me persuado, eu lho remeterei, que o tenho em meu poder, e se ignora o idioma italiano em que ela o escreveu, procure-me que eu lho farei entender." O chamado "arraso".

Demonstra também o seu conhecimento de história, referindo uma lista de mulheres "grandes" e cultas, chamando a atenção para o facto de o serem apesar de todas as dificuldades e interdições que lhes são impostas: "Não quero (Caríssimo Irmão) lembrar a V.C. a nenhuma frequência que as mulheres têm das Cortes, das Aulas e das Universidades, que é aonde se avultam as letras e apuram os engenhos, cousa que sendo aos homens tão frequente, é raríssimo aquele que admira. De mil que frequentam as Aulas e as Universidades apenas se encontra um, ou outro que faça admiração aos mais; quando certamente me persuado que, se às mulheres fosse permitida esta liberdade, seria a maior parte delas sapientíssimas [sic]; pois vemos terem havido muitas de tão alta compreensão e engenho que, ainda sem Mestres e sem exercício, têm feito admiráveis progressos, assim nas letras, como nas manufacturas. E para que se não duvide deste acerto, eu exponho algumas, entre as muitas que podem abonar esta verdade. Ora vá ouvindo."

(Ah, se Gertrudes soubesse o quão o futuro a vingaria, realizando, 300 anos depois, a sua profecia: mulheres em maioria nas universidades portuguesas e nos doutoramentos).

"Uma voz perdida num mundo de misoginia"

"Ainda que Gertrudes Margarida de Jesus pareça soar como uma voz perdida em um mundo dominado pela misoginia, a sua carta surge como um convite ao leitor para apreciar mais de perto seu intelecto feminino, a manejar com astúcia as armas da retórica. Dona de uma refutação inteligente, ela operou selecionando argumentos precisos para contestar as acusações masculinas, condenando a violência utilizada pelo seu adversário, assumindo-se como um ser capaz de ter opinião, oferecendo inquestionáveis mostras de técnica retórica, de raciocínio e de coragem em um mundo monopolizado e legitimado pela dominação dos homens. Ergue-se mais uma voz feminina em defesa de seu sexo, enquanto as mulheres, em sua maioria, ainda mantinham-se presas ao mundo doméstico, analfabetas e impotentes perante a preponderância masculina", escreve, em As marcas da escrita retórica na Primeira Carta Apologética em favor e defensa das mulheres (2016), a académica brasileira Camila Machado Burgardt.

Tanto mais perdida esta voz nos chega quando, como no caso de Paula da Graça, nada se sabe de Gertrudes: "Não sabemos ao certo se ela foi uma religiosa, se uma esposa, se optara por um pseudónimo, apenas podemos afirmar que era dona de uma cultura elevada. Fazia citações em latim, conhecia a Bíblia, lia obras francesas publicadas na época dela e no idioma original francês", diz Betina Santos Ruiz. Já o professor de Literaturas e Culturas da Língua Portuguesa da Universidade de Santiago de Compostela Elias Torres Feijó, que terá sido o primeiro investigador a "descobri-la" e a analisar o debate entre o autor de Espelho Crítico e Cartas Apologéticas, não afasta a possibilidade de existir "uma certa cumplicidade" entre os dois, e chega mesmo a aventar que se poderá tratar da mesma pessoa.

Para além dos folhetos "feministas" de Paula da Graça e de Gertrudes, chegaram-nos mais dois, de anónimas, posteriores: uma assina-se L.D.P.G, a outra "senhora de província". Betina Ruiz conclui assim, com alguma amargura, a sua dissertação de mestrado sobre elas: "Paula da Graça, Gertrudes Margarida de Jesus, L.D.P.G. e uma anónima "senhora da província" escreveram e publicaram no século XVIII documentos em defesa da mulher. Com os respetivos folhetos de cordel, inscreveram na história da literatura portuguesa uma perspetiva mais ou menos erudita acerca do direito da mulher à cultura letrada e à vida pessoal plena. Depois delas, o cânone português permaneceu impassível; sabemos, todavia, que as posições defendidas por elas condiziam com os caminhos trilhados em outros países da Europa. (...) Tivemos oportunidade de conhecer publicações menos generosas para com a mulher e também referimos títulos portugueses e estrangeiros caros ao elogio da mulher no privilegiado mas insuspeitado debate setecentista. Sobre alguns deles encontramos, com uma facilidade muito maior, informações pontuais, citações, interpretações, etc, do que quando empreendemos uma busca em torno da produção dessas mulheres."

E continua: "Em princípio, as quatro autoras queriam falar para uma mulher, hipotética, que estivesse à altura de um diálogo autêntico e arrojado. Pediam implicitamente alguma imunidade frente ao insistente discurso misógino - ou alguma reação, se quisermos, que podia inclusive passar pelo desejo de vingança - além de apreço ou pela erudição ou pelo espírito trocista que permeava os textos delas. O ativismo que caracteriza essas autoras, de quem sabemos tão pouco (...) faz-nos refletir sobre as razões de não terem inaugurado uma linha, de os textos não terem servido como base para o trabalho coletivo - ou para mais trabalho solitário, no mínimo. As quatro escritoras não foram imitadas nem rematadas. Com uma estratégia retórica diferente da dos homens, elas buscaram configurar um grupo coeso para alargar o discurso feminino, mas não obtiveram êxito. Os homens apostaram na repetição das queixas contra as mulheres; nossas quatro escritoras tentaram ser as procuradoras das que não tinham voz. Continuou o silêncio."

Homens mais iguais, mulheres mais oprimidas

Vanda Anastásio ecoa a mesma desilusão: "De algum modo, esse silenciamento continua hoje." E, reconhece, se houve "um momento de maior liberdade no pensar dos papéis femininos no século XVIII, quando a classe preponderava sobre o género", as ideias igualitárias do século XIX, que abalam o sistema, levam, paradoxalmente, a "um fechamento maior: o género começa a preponderar sobre a classe e isso acaba por penalizar as mulheres."

Um símbolo dessa contradição - a de a maior igualdade na sociedade ter resultado numa maior repressão de todas as mulheres -- é aquela que vê como "provavelmente a mais importante feminista do século XVIII", Olympe de Gouges, autora da Declaração dos Direitos das Mulheres e da Cidadã Francesa (1791) e da frase "se as mulheres podem subir ao cadafalso também podem discursar num palanque". Olympe, nome de guerra de Marie Gouze, nascida em 1743, acabaria na guilhotina, em 1793, durante o Terror. Ela e a britânica Mary Wollstonecraft (1759-1797), autora de Uma Reinvindicação dos Direitos das Mulheres (1792) e mãe da escritora Mary Shelley, autora de Frankenstein - morreu das complicações desse parto -- são as grandes referências europeias do feminismo do século XVIII, conhecidas e publicadas no seu tempo de vida.

Em Portugal, da mesma época, com existência palpável, nome conhecido e até um rosto, retratado em vários quadros, temos a marquesa de Alorna, mesmo assim não tão reconhecida como, crê Vanda Anastásio, mereceria.

"Tive, no projeto europeu em que participei e de que fui uma das orientadoras, oportunidade de perceber que no seu tempo, na Europa, não há outra igual a ela. Interessava-se pela poesia mas também pela ciência e filosofia e religião, pintava - sobreviveram dois quadros dela, o resto ardeu na Ajuda -- e o facto de falar uma série de línguas permitia-lhe ter acesso a obras a que por exemplo as francesas, que só falavam francês, não conseguiam aceder. E como andou por essa Europa fora conheceu gente muito variada."

Na sua poesia, publicada só após a sua morte, pelas filhas, "faz a defesa do tratamento igualitário das mulheres perante a lei a propósito do caso de Isabel Clesse, uma mulher acusada de matar o marido e condenada à morte, na opinião da marquesa sem um julgamento justo."

Outro nome de relevo do final do século é Teresa de Mello Breyner, condessa de Vimieiro, autora de Osmia, tragédia que ganhou, anonimamente, um prémio na Academia Real das Ciências, e que tem como protagonista uma guerreira lusitana. Esta, casada com um homem que não a merece, mata-se para não ter de escolher entre o dever, a lealdade ao seu povo e o amor a um militar romano que a fez prisioneira. É o retrato de uma mulher forte, que combate na guerra e mostra ter uma elevada noção de honra, ou seja, que evidencia qualidades consideradas "masculinas" e aptidão para "cargos masculinos" -- como o de governar, por exemplo. Precisamente, a condessa foi uma das vozes a defender o direito de D. Maria I, filha mais velha de D. José, a reinar.

Coroada em 1777, após a morte do seu pai, D. José I, que só tinha tido filhas, "D. Maria I permitiu às mulheres mais altamente colocadas na sociedade", diz Vanda Anastásio, "a oportunidade para ter esperança numa melhoria da condição das mulheres e num alargamento da sua intervenção social e política, vendo uma aberta para promover agendas feministas, como o melhorar da educação feminina e a intervenção das mulheres na esfera política."

Uma esperança vã: após a morte do marido (que era seu tio, irmão do pai) e do filho, e ao fim de 15 anos de reinado, é declarada louca e afastada do trono. Quanto à discussão sobre o direito de voto das mulheres, será arrumada na Constituição de 1822.

A proposta de Domingos Borges de Barros, embaixador do Brasil em França que frequentava a casa da marquesa de Alorna, deputado ao primeiro parlamento português, de conferir direito de voto às mulheres que tivessem mais de cinco filhos (caso da marquesa), considerando que pelo seu contributo em produção de portugueses, como mães, teriam merecido essa distinção, foi derrotada. As mulheres só teriam direito de voto condicional mais de cem anos depois; o universal chegaria apenas em 1975.

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