"D. Filipa sentiu por Salazar algo mais do que uma grande amizade"

O historiador Paulo Drumond Braga publica a 10ª biografia sobre figuras reais. Em<em> D. Filipa de </em><em>Bragança</em>, a grande novidade é a relação entre a infanta e Salazar, em que as cartas consultadas admitem a existência de uma paixão.
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A infanta D. Filipa veio a Portugal representar a família de Bragança nas comemorações centenárias de 1940, uma visita vista por Salazar como "desaconselhável", pois só seis anos depois é que o presidente do Conselho mudou de opinião. Porquê? Segundo o historiador Paulo Drumond Braga, a razão teria sido "por influência da própria D. Filipa" e do convívio entre ambos.

A infanta D. Filipa de Bragança, neta de D. Miguel, viera pela primeira vez a Portugal a 27 de outubro de 1938 mas só em 1946 teve autorização para se estabelecer no país, após o fim da lei do banimento da família real. Entre os seus propósitos, como diz o subtítulo desta biografia - Lutar pela restauração da monarquia no Portugal de Salazar -, mas na contracapa deste volume surgem outras interrogações: "Haveria uma intenção subliminar na aproximação ao ditador? Será possível descortinar algo mais do que uma forte amizade entre a dinâmica princesa de Bragança e Salazar? Estaria a primeira apaixonada pelo segundo? Seria um sentimento recíproco?"

Esta relação é espelhada em várias cartas de D. Filipa para Salazar que o autor desta biografia consultou no Arquivo Salazar na Torre do Tombo e que mostram uma intimidade inesperada e crescente entre ambos. Drumond Braga recupera assim essa amizade na biografia D. Filipa de Bragança: "À medida que o tempo foi passando, D. Filipa tornou-se cada vez mais próxima de Salazar, com quem contactava pessoalmente, por carta e por telefone." Acrescenta que houve outros além dos muitos encontros registados oficialmente: "As cartas de D. Filipa a Salazar referem entrevistas não assinaladas nas agendas" e na "maior parte das vezes, avistaram-se a sós".

Entre a lista de encontros, o autor elenca várias idas da infanta ao palácio de S. Bento, à Quinta das Ladeiras, a Santa Comba Dão, com muitos chás incluídos. Daí que adiante: "A evolução da forma como D. Filipa foi tratando o chefe do Governo nas muitas missivas que lhe enviou entre 1940 e 1968, revela uma crescente aproximação entre ambos. Se em dezembro de 1940, se lhe dirigia como 'Meu caro doutor Salazar' a partir de junho de 1955 começou a usar 'Meu caro amigo'". O mesmo se passava com a maneira de despedir: "De uma formalidade inicial, passou a assinar desde dezembro de 1941 com 'sua muito afeiçoada, D. Filipa', mas em 1962 usava 'afetuosas lembranças, Filipa' e em julho de 1968 'mil saudades da sua sempre muito amiga, Filipa'".

Explica também a biografia de drumond Braga que a "temática das saudades começou a surgir nas cartas da infanta a Salazar depois de março de 1950 e não mais cessou'. Em 1959, a infanta diz mesmo: "Já lhe tenho escrito mil cartas - em espírito". Que não enviava para evitar retirar o "precioso tempo" do governante. Outro dos exemplos é o da carta de março de 1966: "Ontem foi tão bom mas acabou tão depressa; e falámos de muita coisa, mas fiquei com tantas perguntas por fazer; matei saudades, mas cresceram outras ainda maiores, mais penetrantes, que doem."

Para o historiador Drumond Braga é difícil avaliar o teor desta relação: "O ditador suscitou, ao longo de décadas, diversas paixões que provavelmente nunca foram além do platonismo. Daí a Salazar ter tido algum tipo de interesse por D. Filipa vai alguma distância, tanto mais que se sabe como era hábil no relacionamento com o sexo feminino."

A interpretação cabe também ao leitor, como o historiador afirma na entrevista seguir, nas vésperas do lançamento na próxima terça-feira desta biografia.

O subtítulo "Lutar pela restauração da monarquia no Portugal de Salazar" sintetiza esta biografia, mas foi um desejo que a infanta não cumpriu?

D. Filipa empenhou-se na restauração da monarquia pelo menos a partir da década de 40. Com alguém mais tarde escreveu, era ela que conferenciava, reunia, discutia e persuadia. Tentou capitalizar a favor desse desiderato a sua proximidade a Salazar, pois eram frequentes as visitas que lhe fazia em São Bento, as cartas e os telefonemas. Por outro lado, funcionou sempre como o elo de ligação entre o Chefe do Governo e a família de Bragança.

Este é o décimo volume de um elemento da casa real portuguesa que publica. É uma cruzada ou uma necessidade?

Sempre entendi que devem ser produzidas biografias de figuras históricas, quer as mais conhecidas quer as mais ignoradas. Por isso me abalancei, a partir de 2002, a biografar diversos reis, rainhas, príncipes e princesas. Contudo, nunca fui norteado por qualquer ideia de glorificar este ou aquele biografado nem de o apoucar, porque não é isso que se espera de um verdadeiro historiador.

O seu foco é em muito a relação da infanta com Salazar. É o que a sua vida tem de mais interessante ou a intenção é acrescentar 'novidades' à historiografia Salazarista do século XX?

É, sem dúvida, um dos aspetos mais interessantes da biografia de D. Filipa, mas não é o único. Por outro lado, é óbvio que o que escrevi pode ser entendido como algo de novo em relação à história do Estado Novo, pois aclara muitos aspetos da ação dos monárquicos durante essa época e da infanta em particular.

Salazar considerou que a presença de D. Filipa em Portugal no início dos anos 40 apresentava riscos?

O contexto era o das comemorações centenárias de 1940, em que D. Filipa esteve presente em representação da família de Bragança. mas a infanta acalentava o sonho de viver em Portugal, o que Salazar começou por considerar desaconselhável, só tendo mudado de ideias em 1946, acredito que por influência da própria D. Filipa.

Alguma vez terá Salazar admitido que, como Franco fez em Espanha, se restaurasse a monarquia como D. Filipa tanto desejava?

Se o admitiu nunca deu nenhum passo nesse sentido, mas também nunca fechou portas, deixando sempre no horizonte a hipótese, mais ou menos próxima, mais ou menos longínqua, de vir a optar por essa solução. Foi sempre esse jogo que caracterizou a sua relação com os monárquicos. Aliás, numa carta pessoal a Marcelo Caetano, datada de 1957, o próprio Salazar referiu isso mesmo.

Afirma que Marcelo Caetano foi uma grande desilusão para a infanta. Salazar conseguira, no entanto, o seu intento de a ir ouvindo sem nada decidir?

À medida que os anos foram passando, D. Filipa deve ter-se convencido que a monarquia nunca seria restaurada e muito menos com Marcelo Caetano que, embora tivesse tido um passado de monárquico, vinha sendo, desde os anos 50, um dos maiores defensores da manutenção da forma republicana de governo. A sua chegada ao poder, em 1968, não augurava, por isso, nada de bom para os adeptos da restauração. A própria D. Filipa o considerava um traidor.

Conta que D. Filipa pediu a devolução da sua correspondência com Salazar mas considera que não lhe foi entregue. Foi deste modo que a conseguiu consultar?

Sim, a rica correspondência, que durou de 1940 a 1968, encontra-se na Torre do Tombo, no Arquivo Salazar. Gostei muito de ler esses originais, foi uma experiência interessantíssima para mim como historiador, porque, talvez mais do que nenhuma outra fonte, me ajudou a captar os principais aspetos da personalidade de D. Filipa e a perceber muito do que havia sido a sua relação com Salazar e o seu papel na luta pela restauração da monarquia.

O capítulo em que conta o que admite serem os sentimentos de D. Filipa por Salazar foi o mais difícil de escrever?

Não, foi até dos mais interessantes que escrevi, porque o desafio que se me colocou era maior.

Até que ponto a "proximidade" de ambos era facilitada por Salazar e com que interesses?

Salazar facilitou a proximidade com D. Filipa porque ficava a saber tudo o que dizia respeito à família de Bragança, a alguns monárquicos e a possíveis estratégias políticas dos mesmos. Por outro lado, aparentemente gostava do convívio pessoal com a infanta.

Pode dizer-se que a admiração confessada repetidamente por D. Filipa a Salazar passou de um interesse pela restauração da monarquia a uma paixão também?

É possível, nunca se poderá ter certezas a esse respeito, mas alguns trechos de cartas podem indiciar que D. Filipa sentiu por Salazar algo mais do que uma grande amizade. Os leitores do livro poderão ajuizar a esse respeito.

É fácil para um historiador tirar conclusões de sentimentos em vez de abordar factos políticos, sociais e económicos?

Não é fácil, mas o biógrafo tem de o procurar fazer. Aliás, a história dos sentimentos é algo que está atualmente muito na moda, por exemplo entre historiadores anglo-saxónicos.

D. Filipa atravessa várias décadas da vida nacional, tendo assistido à Revolução de Abril. O Movimento das Forças Armadas foi o fim de qualquer esperança pela restauração da monarquia?

Essas esperanças já se haviam desvanecido há muito.

A sua relação como o partido popular monárquico foi pacífica?

Sabe-se muito pouco a esse respeito e as diligências que fiz foram totalmente infrutíferas.

Como olhava Salazar para a monarquia portuguesa, designadamente a representada por D. Duarte Nuno?

Salazar via D. Duarte Nuno como um símbolo de oito séculos de história e, embora diversas vezes tenha escrito que a monarquia tinha vantagens em relação à república, sempre considerou secundária a questão do regime.

Sendo neta de D. Miguel, a sua luta deu vigor ao ideal miguelista ainda em voga no Portugal do século XX?

A maior parte dos monárquicos portugueses acabou por considerar D. Duarte Nuno como chefe da casa real lusa, ou seja, a família de Bragança não contava só com o apoio dos miguelistas, longe disso. Mas D. Filipa manteve sempre acesa alguma chama de miguelismo, como se viu quando, em 1967, conseguiu que os restos mortais dos avós (D. Miguel e sua mulher D. Adelaide) fossem trasladados para Portugal.

Foi fácil recolher depoimentos da família mais próxima?

Sim, os cinco sobrinhos de D. Filipa que contactei foram todos muito amáveis e falei com alguns pessoalmente. Só tenho a agradecer a ajuda que me deram.

Que outras fontes foram fundamentais para construir esta biografia?

Foram sobretudo as cartas de D. Filipa a Salazar, mas igualmente a sua correspondência com outras pessoas, por exemplo João de Azevedo Coutinho, Santos Costa e Alfredo Pimenta, e, bem entendido, todas aquelas fontes que consegui localizar que falavam da infanta, nomeadamente cartas a Salazar de políticos como Pedro Teotónio Pereira e Santos Costa.

Olha para D. Filipa de um modo diferente após esta biografia?

Já tinha ideias muito claras a seu respeito em virtude de uma investigação anterior que fiz e que resultou numa biografia de D. Duarte Nuno, que publiquei em 2017. de qualquer forma, encontrei novidades que muito me agradaram

Porque escolheu biografar D. Filipa?

Pareceu-me uma figura interessantíssima do nosso século XX, praticamente só conhecida entre os monárquicos, sobretudo os mais velhos, e que teve um papel cimeiro na luta pela restauração da monarquia. Se não o conseguiu não foi por falta de empenho.

Que leitores espera ter para este trabalho?

Pessoas interessadas pela história de Portugal no século xx, monárquicos ou não.

D. Filipa de Bragança - Lutar pela restauração da monarquia no Portugal de Salazar

Paulo Drumond Braga

Editora A Esfera dos Livros, 284 páginas

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