Cunhalândia

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O Hospital de Santa Maria abriu uma auditoria para perceber como é que duas gémeas brasileiras - e que residem no Brasil - fizeram um tratamento de quatro milhões de euros em Portugal. Chegaram com consulta marcada e vários médicos foram contra. Há suspeitas de influência do Presidente da República, mas Marcelo nega. Contudo, apesar de um parecer desfavorável de todos os neuropediatras do hospital, o tratamento avançou mesmo. À TVI, Daniela Martins - mãe das crianças - confirmou que as então bebés entraram no Santa Maria em finais de 2019 para serem tratadas, após terem conseguido obter a naturalização portuguesa justamente e só para esse fim. A progenitora precisou ainda que a nora e o filho do Presidente da República tinham interferido a seu favor.

Entretanto, uma carta de indignação dos clínicos desapareceu dos registos hospitalares, tal como o dossiê de admissão das crianças.

Aguarde-se (porventura com delongas) pelo apuramento da verdade. Certo é que Portugal é mesmo uma Cunhalândia, o país da cunha, a terra dos pequenos e médios favores que nutrem teias de poder subterrâneo e paralelo (mas às vezes superior) aos poderes eleitos e às instituições. A cunha, o factor "C" é mesmo uma cultura nacional. Todos "dão um jeito", um jeitinho, um desenrasca. É "mexer os cordelinhos". É a nação das influências, a identidade das informalidades e habilidades, troca de favores, amiguismo, clientelismo, nepotismo. Ismos pútridos que medram nos lobbies partidários, noutros grupos de interesse organizados ou de privilegiados que se julgam investidos de direitos consuetudinários e vivem nos mundinhos onde tudo isso é desculpável e irrecusável.

Numa das suas Farpas, Eça lançava:

"Querido leitor: Nunca penses servir o teu país com a tua inteligência, e para isso em estudar, em trabalhar, em pensar! Não estudes, corrompe! Não sejas digno, sê hábil! E, sobretudo, nunca faças um concurso; ou quando o fizeres, em lugar de pôr no papel que está diante de ti o resultado de um ano de trabalho, de estudo, escreve simplesmente: sou influente no círculo tal e não me façam repetir duas vezes!"

Talento, mérito, dom, esforço, regra, ordem, protocolo, tudo isso é luso-relativo. Variável, contextualizável. Depende.

Fica a coragem e a hombridade dos médicos que ousaram defender o rigor e a ética. Fora isso... que critérios terão sido eventualmente corrompidos para satisfazer Marcelo? Havia lista de espera para essa terapêutica? Foram abalroadas outras crianças? Desde 2019, quantos menores portugueses receberam o oneroso tratamento em questão? Aguardemos, até porque, provando-se o que é alegado, ou Marcelo e os pais das bebés devolvem os 4 milhões ou está encontrada a fórmula secreta para os fundos problemas do SNS: é meter uma cunha em Belém e acabaram-se as filas de espera, as urgências fechadas, as consultas atrasadas. Vai ser tudo na hora, prioritário e de excelência. No limite, nem sequer será preciso viver ou alguma vez ter vivido em Portugal. Basta aparecer. E já está. Instantâneo. É marcelâneo na cunhalândia. Siga.


Psicóloga clínica. Escreve de acordo com a antiga ortografia

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