Cultura "discriminada" contesta regras da DGS e do governo
Marcelo esteve em Budapeste a ver Portugal vencer a Hungria, uma entre 60 mil pessoas que se sentaram no estádio, na terça-feira. Costa marcou ontem presença nas bancadas em Munique, como outros 15 mil adeptos, para ver o Portugal-Alemanha. Entre os dois jogos do Euro 2020, o governo proibiu entradas e saídas da Área Metropolitana de Lisboa ao fim de semana devido ao aumento de casos de covid e à incidência da variante indiana no país. E publicou as normas para espetáculos culturais à última hora de terça-feira, que obrigam a pagar e apresentar teste negativo em eventos com mais de 500 pessoas em espaços fechados e mais de mil ao ar livre.
Mas futebol não é cultura - e continua a ser a exceção, a par dos atos políticos, aos limites impostos pelo governo por razões sanitárias.
A "discriminação" nas regras, sobretudo quando foram tomadas à revelia dos resultados dos eventos-teste - que noutros países europeus foram promovidos pelas autoridades nacionais, enquanto por cá resultaram de iniciativa e mobilização das entidades do setor cultural - e sem haver indícios de surtos originados em espetáculos, levam os artistas à rua.
"As autoridades continuam a tomar medidas inexplicáveis, como se não entendessem a emergência por que estamos a passar", lamenta Pedro Magalhães, presidente da Associação Portuguesa de Serviços Técnicos para Eventos. "Não nos resta alternativa senão manifestar descontentamento", diz, anunciando para dia 30 um protesto "seguro" mas "menos conveniente" do que o de há um ano, quando o setor instalou caixas negras em vários pontos de Lisboa e Porto.
Há mais de um ano sem trabalhar, o setor não aceita que se continue a decidir sem critério ou equilíbrio. "Sugerimos os eventos-piloto e disseram-nos que avançássemos - e pagássemos. Com a ajuda das autarquias, conseguimos promovê-los em total segurança. E no dia em que Bruxelas anuncia viagens livres dentro da União Europeia, aqui sabemos que a cultura, que sempre cumpriu, fica sujeita a estas restrições", desabafa o promotor cultural Álvaro Covões.
"Os eventos-piloto foram iniciativa das associações, empresas e trabalhadores da cultura e eventos - devia ter sido do governo. As autoridades nacionais só tinham de rastrear e dar um parecer sobre a sua viabilidade. Agora, temos conhecimento de que o processo de tratamento dos dados está atrasado e nem sequer há data para conclusões. Ou não entendem o drama que vivemos ou a incompetência é muita", conclui Pedro Magalhães.
O DN questionou, logo na quarta-feira, a Direção-Geral da Saúde (DGS) e governo sobre a base científica que serviu para estabelecer os critérios para os eventos culturais. Não teve resposta. Tal como não teve resposta à possibilidade de as regras serem revistas quando se conseguir os resultados dos eventos-piloto, cujo atraso a DGS atribui a "um problema informático". Igual silêncio foi a resposta quando perguntámos se havia indícios de surtos em espetáculos.
Preocupadas com os efeitos das regras e lembrando que "o acesso à cultura é um direito constitucional", as associações pediram nesta semana uma audiência com o primeiro-ministro. António Costa recusou.
À questão sobre a quem cabe pagar os testes respondeu o secretário de Estado da Saúde no Parlamento. "O custo dos eventos culturais é imputado, com certeza, ao consumidor final", vincou António Lacerda Sales. Quem quer ir ver um concerto, além do bilhete, terá de pagar o teste. Uma ideia que Covões, também presidente da Associação de Promotores de Espetáculos, Festivais e Eventos, considera "uma catástrofe para o setor", numa altura em que a incerteza já provocou "uma paragem quase total" na venda de bilhetes. "Se agora há pouco público, com teste obrigatório pago ainda haverá menos", diz, pedindo a Presidente e primeiro-ministro que "ponham ordem na casa, reequilibrem as regras e acabem com a discriminação a setores que sempre cumpriram".
Covões põe ainda em causa a questão da proteção de dados na vistoria dos testes à entrada dos espetáculos. E lamenta que nos transportes não haja estas restrições: "Uma pessoa tem o teste negativo para ir a um espetáculo, mas pode contagiar-se se vier de comboio ou de autocarro do Porto para Lisboa, ou depois no Metro." As regras atuais ditam uma lotação de dois terços para os transportes públicos de Lisboa, mas no resto do país circulam com 100% de lugares sentados. Nunca exigiram teste.
Depois da Festa do Avante! e do Arraial Liberal, o setor questiona se as restrições da cultura se alargam aos eventos de cariz político. Questionados pelo DN sobre a obrigação de mostrar teste negativo em comícios, manifestações e ações políticas, DGS e governo remeteram-se uma vez mais ao silêncio.
"A variante indiana, que tanto está a preocupar o governo e as autoridades de saúde, não foi trazida de Portugal para Portugal." É Álvaro Covões que aponta o dedo à falta de controlo nas fronteiras - "em especial nos aeroportos, o controlo aos passageiros para verificar se trazem teste PCR negativo é aleatório por decisão superior. Não podemos continuar a ser sacrificados com decisões discriminatórias que penalizam sempre a sociedade civil".
Mas outros já o denunciaram. Incluindo Pedro Ribeiro, diretor de programação da Rádio Comercial, que há uma semana, no regresso da Tanzânia, revelou no seu Instagram o "choque" pela ausência de controlo nas fronteiras. "Nem na escala em Amesterdão, nem na chegada ao aeroporto de Lisboa, ninguém pediu teste nenhum. Nada. Zero controlo. Foi sair do avião, apanhar as malas e sair."
Também quem vem de Espanha por estrada tem entrada livre desde maio - e mesmo controlos aleatórios só existem do lado de lá da fronteira.