Cristina
O que me unia à Cristina? Isso que une aqueles que têm um tanto de louco, outro tanto de inadaptado e muito de perplexo.
Sim, éramos amigos da noite. Não tive tantos quanto isso, ao fim e ao cabo. Quase todos os restantes eram amigos de outras horas do dia também. À Cristina, encontrava-a sempre de madrugada.
Não tinha o telefone dela, sequer: cruzávamo-nos por acaso, quase sempre que eu passava pela Terceira. Brindávamos à coincidência e ficávamos ali, a brincar aos cínicos, às vezes até o sol espreitar.
E, se não nos encontrávamos, eu tinha pena. Gostava de encontrar a Cristina. Havia nela uma sabedoria.
Uma mundividência.
A Cristina morreu faz hoje dois anos. De repente. Inapelavelmente. Sentiu-se mal durante uma caminhada. O seu coração parou.
Contam testemunhas que durante todo esse dia choraram, pelos corredores do hospital, enfermeiros, médicos, até pacientes. Cristina tinha 43 anos e nenhum historial cardíaco.
Aquela morte era também a morte de todos eles. A inevitabilidade dela. A sua inevitável precocidade.
A Cristina faz falta numa ilha assim. Mas, mesmo vivendo aqui, eu só soube da sua morte há uns meses. Estava num jantar de fim de ano quando se falou de alguém que era amigo de alguém que era amigo de alguém.
Então, um disse: "Ah, isso era a Cristina... Coitada."
Fiz as contas: tinha-a visto perto do dia, no cartório onde trabalhava. Havíamos rido e conversado. Um ano e meio depois, eu pensava que ela estava viva. Nunca me ocorrera que pudesse estar morta.
Demorei semanas até conseguir contactar a família, a apresentar condolências e a desculpar-me.
Ainda não consegui decidir-me quanto ao que esta história significa: sobre mim, sobre esta terra, sobre este tempo. Tento responsabilizar-me.
Mas isto não é sobre mim: é sobre a Cristina.