Minority Report, um filme de 2002, apresenta um futuro livre de criminalidade. A utopia tem por base um sistema que em 2054 consegue prever quando é que um crime vai acontecer, o que acaba por resultar numa taxa de homicídios igual a zero. O sistema acaba por ter uma falha - afinal havia um relatório paralelo - mas a ideia de base é a previsão..E se fosse possível fazê-lo já hoje, em 2019? Esta é uma forma simplista de explicar a função de um criminólogo, mas não anda longe da verdade. A profissão acaba de ser reconhecida pela Assembleia da República no início deste ano, apesar de ser matéria de licenciatura desde 2006. Os criminólogos estão em todo o lado: nas cenas de crime e nas prisões, mas também nos gabinetes de apoio à vítima e de inserção social. Deviam estar também nas escolas, nos tribunais e até nas autarquias, defendem docentes e alunos.."Um criminólogo não é um detetive, não é um policia, mas também o pode ser", explica Vítor Miguel Silva, presidente da Associação Portuguesa de Criminologia, que define a disciplina como "uma ciência multidisciplinar que pretende estudar o fenómeno criminal. Não estuda apenas quem comete o crime, mas também o contexto, a vítima e a criminalidade". "Trabalha a montante, na prevenção da criminalidade e também na análise. Os criminólogos fazem relatórios sobre intervenções policiais ou em situações de violência doméstica", acrescenta José Manuel Anes, criminalista e professor universitário, até há bem pouco tempo docente da Licenciatura em Criminologia da Universidade Lusíada, no Porto..A profissão "faz o cruzamento das ciências sociais e humanas e um pouco das ciências exatas, porque o criminólogo tem uma dimensão de sociologia, de criminologia especificamente, mas também noções do trabalho que é feito por um especialista forense, quer seja o cientista como o que investiga os crimes", acrescenta. Como é uma disciplina que estuda o crime em todas as suas vertentes, um criminólogo "tem de ter noção das técnicas analistas forenses", esclarece José Manuel Anes, também professor, na Lusíada de Lisboa, das cadeiras de Organizações Criminosas, de Terrorismo e de Informações Estratégicas..Um criminólogo deveria estar, para o criminalista, em gabinetes de advogados que se dediquem ao âmbito do crime. "É uma espécie de um consultor para as partes mais específicas da investigação forense. Não é um técnico, nem um cientista forense, mas tem de dominar todas essas técnicas para aconselhar e eventualmente perceber se estão a ser bem feitas. E faz relatórios das diversas perícias realizadas.".Seria útil trabalhar com as polícias, tendo em conta a alegada violência policial que nos últimos tempos tem ocupado os noticiários? O criminalista defende que todos sairiam a ganhar com essa cooperação. " [O criminólogo] tem de ter noção daquilo que é o limite de uma intervenção policial e as suas consequências físicas e psicológicas dessa agressão." Mas não é só neste âmbito que poderiam tornar a justiça "mais eficaz".."Estes licenciados [em criminologia] não estão a ser utilizados. Existe quase que uma OPA (entre aspas) dos juristas sobre estes fenómenos sociais [terrorismo e crime organizado]. Tem de haver muita humildade, da parte dos juristas, e deviam pedir em concurso outras especialidades para corrigirem as definições jurídicas que estabeleceram no código penal", aponta José Manuel Anes.."A definição científica do que é terrorismo e crime organizado no contexto das ciências sociais e humanas não coincide, por vezes, em Portugal, e infelizmente, com a definição jurídica. Há uma ideia que os juristas têm de que sabem tudo sobre tudo e isso é mau, tem de se dar lugar aos especialistas e ouvi-los ou corremos o risco de fazer acusações de terrorismo em casos que não têm nada que ver com terrorismo", diz..O último concurso que abriu para inspetores da Polícia Judiciária foi em 2015, o curso teve início em setembro de 2017 e termina em março deste ano. Das 120 vagas disponíveis a maioria foi ocupada por licenciados em Direito (45), seguidos por licenciados em Criminologia (11), Psicologia (9), Psicologia Criminal (7), Ciências Psicológicas (6) e Ciências Forenses e Criminais (6)..Criminólogos do lado dos criminosos?."Às vezes são acusados de serem amigos dos criminosos, não são, têm é uma leitura mais profunda desse fenómeno e a sociedade precisa de leituras compreensivas dos diversos fenómenos e dos diversos comportamentos", defende o criminalista, que explica a aparente resistência das polícias à entrada destes especialistas nas suas fileiras. "É uma disciplina nova, há sempre a ideia de que não precisamos desses, nós sabemos tudo, mas isso não pode acontecer para sermos eficazes e justos, temos de estar abertos a outras especialidades.".Deve-se a Vítor Miguel Silva, presidente da Associação Portuguesa de Criminologia, e aos outros cinco fundadores da associação, o reconhecimento da profissão. "Foi uma vitória", assume, até porque em Portugal existem cinco mil licenciados em Criminologia que não encontram, por exemplo, a profissão na lista do INE, o que significa que aquela também não consta na lista de profissões dos centros de emprego. "Também não temos CAE nas Finanças [Classificação Portuguesa das Atividades Económicas] ", esclarece o criminólogo, que iniciou a sua licenciatura em 2007, tinha 30 anos e estava já integrado numa força policial. Assim que o diploma aprovado na Assembleia da República seja publicado em Diário da República, Vítor Silva acredita que o caminho será mais fácil. Mas ainda será preciso "partir pedra"..A 3 de janeiro deste ano entraram 30 novos peritos do Laboratório de Polícia Científica para a área da criminalística da PJ. Foram começar uma formação especializada, um reforço de meios humanos descrito como "um aumento da capacidade de resposta da Polícia Judiciária, a nível nacional, no apoio à investigação criminal, quer no processamento de locais de crime da competência reservada da PJ quer no desenvolvimento do sistema automático de Impressões digitais", lia-se no comunicado enviado às redações. A formação tem lugar na Escola da Polícia Judiciária e, segundo a mesma nota, será seguida de estágio em diversas unidades da PJ. No total, os novos formandos estarão um ano "em aprendizagem e treino"..Para concorrer a estas vagas "basta ter o 12.º ano", esclarece Vítor Silva, mas esses lugares são uma das saídas profissionais que deveriam estar à disposição dos criminólogos. O presidente da Associação Portuguesa de Criminologia considera que estes licenciados deveriam fazer a prova de acesso de igual modo, uma vez que "existem matérias específicas da polícia", mas que se os lugares fossem ocupados por estes especialistas "a duração da formação seria mais pequena, a polícia teria os operacionais [disponíveis] mais rapidamente, além de que seriam pessoas com pelo menos mais três anos de formação"..O "fenómeno CSI" atrai estudantes para a licenciatura.Em Portugal, só cinco universidades disponibilizam a licenciatura em criminologia: duas públicas, a Faculdade de Direito da Universidade do Porto e a Universidade do Minho - onde este foi o curso mais concorrido do país em 2017 - e três privadas, ISMAI, Universidade Fernando Pessoa e Universidade Lusíada. "O curso só existe no Porto e em Braga. Há um mestrado na Nova, em Investigação Criminal e Criminologia, mas não existe de raiz uma licenciatura.".Há ainda uma licenciatura em Ciências Forenses e Criminais no Instituto Universitário Egas Moniz, mas Criminologia só mesmo no norte do país. Quer no ensino público quer no privado, "as licenciaturas são semelhantes, as disciplinas é que podem ter outros nomes, mas os conteúdos são os mesmos", diz Vítor Silva, que decidiu licenciar-se em Criminologia porque já estava integrado na polícia e essa era uma forma de se especializar. Atualmente trabalha na área de reinserção social, uma das áreas em que os criminólogos podem exercer..As lutas para vingar a profissão têm sido muitas. Os criminólogos já foram obrigados a recorrer à Justiça para forçar o diretor do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) a aceitar candidaturas destes licenciados - o tribunal deu razão aos queixosos e os licenciados em criminologia puderam concorrer. Alguns deles ficaram colocados. "É através destas lutas que temos conseguido", mas isso não significa que não continuem a ser excluídos em áreas que constam da lista de saídas profissionais para o curso. São elas - tal como consta do diploma aprovado a 3 de janeiro pela AR -: diretor e coordenador de segurança privada ou mediador penal, e podem ainda exercer em tribunais, gabinetes de mediação, estabelecimentos prisionais, serviços de reinserção social, comissões de proteção de crianças e jovens, entre outros..Não é só o "desconhecimento" da profissão, como defende Vítor Silva, que prejudica a especialidade, o fenómeno do CSI (série de televisão - CSI: Crime Sob Investigação) também desvia as atenções do essencial. "Muitas pessoas pensam que a criminologia é o CSI. Um criminólogo não é um polícia, mas todos os polícias deveriam ter formação em criminologia", defende. Sim, há quem escolha esta licenciatura influenciado pelas séries sobre investigação criminal.."Tive colegas que escolheram as ciências forenses por causa do CSI, mas depois perceberam que o curso e a realidade eram distantes do que se vê na televisão, mas passaram a gostar e ficaram", conta. Atualmente, e uma vez que há mais informação sobre a área de atuação de um criminólogo, os estudantes chegam à licenciatura menos iludidos. Sabem, por exemplo, que são essenciais na coordenação da Polícia Municipal, um cargo que estava a ser ocupado por outras licenciaturas e para o qual a criminologia serve que nem uma luva, uma vez "que trabalha muito a área da prevenção"..O que pode então fazer um criminólogo? Nos casos de violência doméstica, "consultamos os processos desde o nascimento do crime até à sua resolução, muitos colegas nossos trabalham com as equipas de apoio à vítima" - a UMAR - União de Mulheres Alternativas e Resposta chegou a trabalhar com criminólogos, avança. Os programas que têm sido implementados em algumas escolas também têm obtido "excelentes resultados". São, no entanto, programas de prevenção da criminalidade, como Vítor Silva aponta, e "a prevenção não dá número. Depois temos as cadeias cheias, o que não vai resolver o problema [da criminalidade], alerta. Até porque, defende o criminólogo, "ninguém nasce criminoso, temos é de perceber os passos que se dão até lá chegar"..Somos criminosos por oportunidade?.São esses os passos que os estudantes da licenciatura em Criminologia estudam, mesmo que depois vão aplicar os conhecimentos na área da reinserção social. Iara Brito tem 23 anos, é licenciada em Criminologia pela Faculdade de Direito da Universidade do Porto e está atualmente a tirar o mestrado em Ciências Forenses na Faculdade de Medicina da mesma instituição.."Escolhi esta área porque queria saber o que leva as pessoas a cometerem crimes, era um bocadinho entender o comportamento humano", conta. Durante o estágio, trabalhou com antigos reclusos e aquilo que aprendeu nas aulas de Criminologia Clínica foi fundamental. "É uma disciplina que nos ajuda na parte da entrevista ao ofensor, na perceção do discurso, nas desculpas que são usadas para justificar certos comportamentos, também estudamos a linguagem verbal", descreve. Admite que muitos colegas esperavam que as aulas os colocassem em cenário de CSI. "Pensavam que iríamos sempre ao local do crime, de arma na mão, mas a criminologia é uma licenciatura muito teórica", diz..João Mendes, 22 anos, confessa que foi um desses alunos "deslumbrados" com as séries televisivas de investigação criminal. "Não estava à espera que o curso tivesse tanta componente de Direito, que até é algo de que gosto", revela o estudante de Criminologia, atualmente no último ano da licenciatura na Universidade Lusíada..Escolheu o curso porque quer ingressar nas forças de segurança ou nas Forças Armadas. As aulas práticas incluem reconstituições de crimes - o cheirinho a CSI que o atraiu inicialmente - mas o que lhe parece importante, decorridos quase três anos, são aprendizagens como a de "prevenção situacional". "Sabemos que os edifícios pintados de cores garridas influenciam a taxa de criminalidade, por exemplo, e por isso é que agora se aposta em cores mais suaves para os bairros sociais." Pormenores, porque as respostas para perguntas como "Somos criminosos por oportunidade?" podem inverter o paradigma e aproximar a sociedade dessa tal utopia em que as taxas de homicídio seriam nulas.