Crianças ucranianas sem vagas em creches e jardins de infância

Atualmente, apenas um em cada quatro menores que chegam a Portugal está inscrito na escola. Os mais de quatro mil ucranianos refugiados que estão integrados nas escolas nacionais podem continuar os estudos no sistema de ensino ucraniano através de aulas <em>online</em>, sendo a aprendizagem do português obrigatória.
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Refugiadas ucranianas em Portugal lamentam a falta de vagas em creches e jardins de infância para os filhos, situação que dificulta a sua integração, porque não conseguem fazer cursos de formação, ir a entrevistas de emprego ou aceitar trabalhos.

O alerta partiu da Associação Ukrainin Refugees (UAPT): "No caso das crianças e adolescentes do ensino básico e secundário está tudo a correr bem, mas com os mais pequenos está a ser bastante complicado, porque não há vagas para todos", disse à Lusa Iryna Shkira.

Ir a uma entrevista de emprego ou tirar um curso básico de português é complicado para quem não tem com quem deixar as crianças, admitiram ucranianas que chegaram ao país nos últimos meses fugidas da guerra.

Desde o início do conflito, em 24 de fevereiro, Portugal acolheu mais de 35 mil pessoas: duas em cada três são mulheres e cerca de 10 mil são crianças com menos de 14 anos, segundo dados do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras.

A Lusa questionou o Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social na semana passada sobre quantas crianças estão em creches e jardins de infância e quantas continuam sem vagas, mas não obteve qualquer resposta até ao momento.

O Governo alterou o limite máximo de crianças nas creches, permitindo mais duas por sala, mas sem apoiar financeiramente os estabelecimentos privados que o decidam fazer.

"Nós estamos a receber crianças gratuitamente, mas não conseguimos receber mais porque não há qualquer comparticipação. A Segurança Social só apoia financeiramente as crianças que estão em IPSS (Instituições Particulares de Solidariedade Social). Já avisámos que poderíamos receber mais, mas não obtivemos qualquer resposta", lamentou Susana Batista, presidente da Associação de Creches e Pequenos Estabelecimentos de Ensino Particular (ACPEEP).

À falta de apoio financeiro, Susana Batista acrescentou a falta de coordenação: "As crianças estão a chegar até nós porque as famílias nos procuram. Houve diretores que avisaram as câmaras municipais da sua disponibilidade, mas depois não houve qualquer articulação para perceber onde faziam falta ou onde é que era preciso".

Daria chegou em março a Portugal e ainda não conseguiu arranjar escola para os filhos, de 2 e 4 anos. Vivia em Kharkiv até a guerra a obrigar a despedir-se do marido, irmão, mãe e sogra. Fugiu com os filhos e o quase nada que conseguiu carregar numa mala.

A especialista em qualidade de software vive em Lisboa e mantém o emprego que tinha na Ucrânia: "Continuo a trabalhar online e em part-time. É difícil, mas tento concentrar o trabalho quando eles estão a dormir a sesta e, quando acordam, ponho-os a ver televisão", contou à Lusa.

Um dos objetivos de Daria é, precisamente, conseguir comunicar melhor com os locais: "Os portugueses são muito acolhedores, mas já encontrei pessoas que não falavam inglês e foi muito complicado", desabafou.

Preocupada com a falta de oferta de cursos para os que não têm com quem deixar as crianças, a Associação Ukrainin Refugees encontrou na Fundação Vodafone uma resposta.

No edifício-sede da Vodafone, em Lisboa, os adultos têm aulas diárias de português ou de inglês, enquanto as crianças brincam numa gigantesca sala transformada num espaço de brincadeira.

"Montámos um infantário em tempo recorde. Em média temos 15 a 20 crianças todos os dias, enquanto as mães estão nas aulas", explicou à Lusa Ana Mesquita Veríssimo, responsável da Fundação Vodafone, que chegou a trazer brinquedos dos filhos para o trabalho para alegrar a sala das crianças.

No segundo andar do moderno edifício há agora uma sala para os bebés dormirem a sesta, um campo de futebol improvisado, uma televisão "com os canais russos bloqueados", almofadas gigantes espalhadas pelo chão e muitos brinquedos, dos quais se destaca um castelo de tijolos de cartão feito pelas crianças que colocaram uma bandeira ucraniana no topo. Há mesas e cadeiras de plástico coloridas em tamanho pequeno, lápis de cor e desenhos colados nas paredes.

"A Fundação tem feito um trabalho fantástico e esta iniciativa permite também às crianças aprender português", acrescentou Iryna Shkira, explicando que uma das quatro educadoras é portuguesa e "tem ensinado imensas coisas, como saber os nomes das cores ou dos frutos".

Oksana, Alina e Nataliia são as outras três educadoras, também refugiadas ucranianas. "Foi uma forma que encontrámos de dar emprego a quem estava a chegar", contou Ana Mesquita Veríssimo, acrescentando que para as crianças também é bom ter quem fale a sua língua.

Mas os primeiros dias não foram fáceis. "Os miúdos não queriam ficar aqui sozinhos e as mães apareciam nos intervalos das aulas para ver se estavam bem. Lembro-me da Karina agarrada à mãe. As crianças mais pequenas, entre os 2 e os 4 anos, eram as que choravam mais. Estavam mais assustadas. Não queriam ficar longe das mães", recordou Alina.

A educadora que chegou a Portugal fugida de Odessa a 22 de março garantiu que "agora os miúdos vêm a correr para este espaço".

Vsevolod, de 7 anos, é um desses casos. "Ele passa o dia a perguntar quando é que vimos para aqui, porque aqui tem meninos com quem brincar", contou Katya, a mãe que há 33 anos nasceu em Lugansk.

A costureira de Lugansk está agora desempregada e acredita que aprender português poderá ajudar a encontrar trabalho e por isso também se inscreveu no curso da Vodafone.

Iryna Shkira gostava que mais instituições avançassem com projetos semelhantes ao da Fundação Vodafone. "Os portugueses são muito solidários, acredito mesmo que sejam os mais acolhedores da Europa, mas era bom que outros pudessem ter iniciativas como estas dos cursos com espaço para ficar com as crianças", apelou a responsável da associação.

Enquanto Katya aprende português, o filho brinca com as outras crianças, assim como Daria se sente descansada durante as três horas diárias de aulas em que Danilo e Sofia ficam aos cuidados das professoras.

Apesar das educadoras ucranianas, ali não se fala do que ficou para trás. "Não perguntamos nada às crianças, porque não queremos que recordem momentos que podem ter sido dolorosos", explicou Ana, a professora portuguesa.

Mas o passado transparece, por vezes, nos desenhos. "Um menino fez uma casa e depois riscou-a toda de preto e percebemos que tinha sido bombardeada", contou.

Anastasia fugiu de Odessa em março e hoje é uma das mais de quatro mil alunas integradas nas escolas portuguesas, onde se sente acarinhada, mas lamenta ter apenas uma hora semanal da disciplina que ensina português a estrangeiros.

Depois de uma viagem de quatro dias de autocarro, Anastasia chegou a Lisboa com a mãe e o irmão, de sete anos. Para trás, ficou o pai, mas também amigos e professores da escola que frequentava em Odessa.

A menina de 12 anos faz agora parte das estatísticas do Ministério da Educação, que indicam que há mais de quatro mil alunos fugidos da Ucrânia integrados nas escolas portuguesas desde o início do conflito, em 24 de fevereiro.

Anastasia frequenta um estabelecimento de ensino no bairro lisboeta da Lapa: "Vou para a escola, o que é bastante interessante, mas não percebo nada", disse sorridente, lamentando ter apenas uma hora semanal da disciplina de "Português Língua Não Materna" (PLNM).

"É com os meus colegas que acabo por aprender mais português. Eles são muito simpáticos e solidários", afirmou.

A Lusa questionou o Ministério da Educação sobre quantas aulas de PLNM têm, em média, os alunos que estão a chegar da Ucrânia, mas não obteve resposta até ao momento.

O presidente da Associação Nacional de Diretores de Agrupamentos e Escolas Públicas (ANDAEP) referiu que as escolas funcionam com os recursos humanos que têm.

Com esta nova vaga de alunos estrangeiros, "o Ministério permitiu mais um reforço de docentes, mas as escolas já tinham problemas de escassez de professores e dificuldades em contratar, nomeadamente professores de Português", explicou Filinto Lima.

Filinto Lima é também o diretor do Agrupamento de Escolas Dr. Costa Matos, em Vila Nova de Gaia, que começou a receber crianças fugidas da guerra logo em março.

A maioria ficou nas escolas primárias do agrupamento e aprendem português com uma professora de inglês: "Como muitos deles já falavam inglês, foi mais fácil ultrapassar a barreira da língua e agora já temos muitos miúdos a começar a falar português", disse.

Desde fevereiro, chegaram a Portugal quase 36 mil pessoas em fuga da guerra na Ucrânia, das quais cerca de 12 mil são menores. A todos os alunos foi prometido lugar numa escola pública.

Até quarta-feira, havia 4.264 ucranianos em estabelecimentos de ensino desde o pré-escolar ao secundário. Lisboa, Sintra, Cascais, Oeiras e Portimão são os distritos com mais alunos, segundo dados do ministério.

"Acredito que a grande maioria de alunos tenha aulas de Português Língua Não Materna (PLNM), mas também as autarquias, empresas e outras organizações têm estado a proporcionar cursos de línguas, em especial para as mães dessas crianças", acrescentou o diretor.

É o caso dos cursos de Português e Inglês oferecidos pela Fundação Vodafone, em parceria com a Associação Ukrainin Refugees (UAPT).

A maioria dos alunos é maior de idade e tem filhos, mas também há menores. Para tentar aprender a língua mais depressa, Anastasia é uma das 60 alunas dos cursos, que começaram há um mês. São três horas diárias durante três meses.

No curso está também Liza, de 14 anos. Chegou de Kherson há dois meses com os pais e a irmã de sete anos e dizem estar "agradecidos pela ajuda e simpatia dos portugueses".

Já em Portugal, viram um vídeo do Colégio de Santa Doroteia a saudar a chegada dos ucranianos: "Gostámos muito do vídeo e decidimos ir à escola. Batemos à porta a dizer que gostávamos muito que as nossas filhas estudassem ali e eles simplesmente aceitaram", contou emocionado o pai, Ivan.

Liza, de 14 anos, e Carina, de 7, frequentam agora gratuitamente o colégio, onde sentem diariamente o apoio da comunidade escolar: "Uma professora traduziu todo o material escolar para ucraniano e quando souberam que eu estava a aprender piano na Ucrânia o professor também se ofereceu para me dar aulas, sem pagar", contou Liza.

Mas a maioria das crianças e jovens refugiados continua fora do sistema de ensino português. É o caso de Vsevolod, de 7 anos, filho de Katya.

Deixou Lugansk e chegou a Lisboa em meados de março com a mãe. Foram acolhidos por uma família portuguesa, que lhes cedeu um quarto no apartamento em Odivelas. A costureira de Lugansk está sem trabalho e o menino, com idade para frequentar o 1.º ciclo, ainda não começou a ir à escola.

À Lusa, Katya explicou o motivo: "Ainda não decidimos onde queremos ficar a viver, por isso não está inscrito. Mas este curso (da Vodafone) acaba por ser uma oportunidade de, tanto ele como eu, aprendermos português e distrairmo-nos um pouco".

Filinto Lima acredita que muitos pais não inscrevem os filhos porque têm "uma forte esperança de regressar ao seu país o quanto antes". Mas deixa um alerta: "Se a situação na Ucrânia se mantiver, no próximo ano letivo, o número de inscritos pode disparar".

Atualmente, apenas um em cada quatro menores que chegam a Portugal está inscrito na escola.

Estes mais de quatro mil estudantes podem continuar os estudos no sistema de ensino ucraniano através de aulas 'online', sendo a aprendizagem do português obrigatória.

É o caso da filha de Alina. "De manhã, tem aulas online com professores da Ucrânia e, à tarde, frequenta a Escola Secundária Filipa de Lencastre, em Lisboa", contou à Lusa a ex-professora de Matemática que agora é educadora de infância na creche improvisada pela Fundação Vodafone para acolher as crianças enquanto as mães estão nos cursos de línguas.

Aprender português é essencial tanto para crianças como adultos, que veem aqui um passaporte para a integração na comunidade local.

No curso da Vodafone está também Irina, que fugiu de Lviv com a filha de 9 anos no final de março. A menina é uma das mais de 1.600 crianças inscritas no 1.º ciclo. Durante a semana frequenta a escola portuguesa e ao sábado é aluna na escola ucraniana.

A psicóloga quer ficar a viver em Portugal e acredita que o curso de português poderá ajudar na integração e a encontrar trabalho.

A professora Salomé Carvalho é quem dá aulas na Vodafone, mas também ensina estrangeiros em duas escolas públicas.

À Lusa disse que os ucranianos que agora estão a chegar a Portugal são os seus alunos "mais traumatizados", uma vez que "quem deixa família para trás num contexto de guerra, nunca está calmo".

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